Jesuíta Barbosa

Jesuíta Barbosa, ator | por Heloisa Eterna | foto Rafael Aguiar

JESUÍTA BARBOSA: QUEBRAR MITOS SOBRE SEXUALIDADE E ALÇAR MINORIAS A PAPÉIS DE DESTAQUE SÃO ASSUNTOS QUE FERVILHAM NA CABEÇA DO ATOR

Aceitar ou recusar um papel pode ser um ato político?

Acho que sim. Mas penso que enquanto atores e atrizes, a gente se coloca num lugar vulnerável na maioria das vezes. Não sabe direito o que a obra vai se tornar, o que vai acontecer no caminho. Depende muito de quem vai conduzir. O diálogo com os integrantes do projeto é necessário. Mas é bom que seja um ato político. Tenho personagens ótimas, que consigo encontrar nuances políticas o tempo todo, às vezes pequenas, e engrandecê-las. A função do artista é refletir o tempo em que vive. Não dá para ficar como marionete. Não somos isso. Mas também vejo que tem projetos que não nos interessa, interessa a outros. Nesse momento do nosso país, a situação é alarmante. Tudo vira uma questão grave. A gente tem que ter cuidado. E, ao mesmo tempo, entender que são processos, que as coisas vão se modificando. Mas toda arte é política. Não penso que a gente tem que se limitar a aceitar ou recusar um papel sendo um ato político. Acho que a gente pode transformar o papel num ato político e criar nuances para defender minorias.

“É uma condição quase  machista […] Não sou um galã.”

O que é mais sofrido na profissão?

Talvez seja trabalhar com o ego latente, porque a gente fica botando a cara o tempo todo na televisão para milhões de pessoas. Isso vai para um lugar, às vezes, desconfortável, desinteressante, anticriativo. Parece que sua imagem tem que aparecer antes do trabalho que você faz. Isso me preocupa muito. É sofrido também trabalhar com questões muito íntimas, pessoais. Faço um filme, por exemplo, e ali nas relações que se criam vêm todas as questões da tua criação, da tua vivência familiar. É quase como uma terapia que, às vezes, é bastante violenta. Acho que é sofrido o ego e o entrelace com tua vida pessoal. Mas não interessa me desfazer disso, porque fica bom quando se mistura. Tenho processado muitas questões minhas, pessoais e familiares com o trabalho que faço. Isso me deixa feliz porque é uma oportunidade de dividir, ou dissipar nós que tenho na minha personalidade, que não interessam ou que interessam para fazer um trabalho. Talvez eu seja mesmo esse escravo do passado. Também uso isso para transformar meu futuro. Mas o ego é… Nossa, é muito complicado. As pessoas confundem trabalhar com isso, atuar, e ser famoso, o produto e tal. Isso não me interessa.

Sair do nordeste do Brasil e se tornar um galã é uma vitória? * O ator é de Salgueiro, que tem quase 60 mil habitantes, e passou a infância em Parnamirim, ambas cidades do sertão de Pernambuco.

Esse lugar que te colocam, de galã, vem carregado de muitos preceitos que são desinteressantes hoje em dia. É uma condição quase  machista, o lugar do homem, lidar com várias mulheres e tal. Não estou pra isso. Até porque tem toda uma questão sexual que tenho debatido. Não sou um galã.

Essa trajetória te deixa realizado?

Completamente. Me sinto extremamente realizado. De ter saído de uma cidade do interior de Pernambuco, ir estudar teatro em Fortaleza, acreditar que poderia trabalhar com isso apesar de saber que é uma área com pouco investimento. Vi que poderia sobreviver, conheci figuras, professores de teatro, que mostraram que era possível e que ia dar certo. Isso me impulsionou. Não fiquei em dúvida. Ainda que a família, a sociedade te coloque nesse lugar: “Você vai fazer isso mesmo? Não quer fazer uma faculdade de verdade?”. Era o que eu ouvia quando fazia licenciatura em teatro. A gente vai contra, e ganha força. Hoje em dia, morando no Rio e agora indo morar um pouquinho em São Paulo, entendendo essas duas grandes cidades do Brasil e os problemas que têm, ainda que a verba toda circule nelas, sinto que tenho uma responsabilidade. Preciso dividir com meus entes, com as pessoas da minha cidadezinha. Devo e quero ter uma relação contínua com eles. Aí que a gente consegue criar raiz. Minha vontade é voltar a Parnamirim, desenvolver projetos de cultura, dar acesso a cinema, fazer um festival. Vamos adquirindo uma responsabilidade que é possível, não é difícil. É uma questão de força de vontade.

“Entendi qual era minha responsabilidade por ter convivido com pessoas desse universo LGBTQ.”

(Sobre o convite para interpretar uma drag)

Qual o maior desafio em viver a cantora drag queen Shakira em “Onde Nascem os Fortes”, a supersérie da Globo? 

É um grande desafio, devo dizer. Não tem nada linear na criação dessa personagem, um rapaz criado pelo pai e que perdeu a mãe muito cedo. Ramirinho carrega o nome do pai, que quer que ele se torne um grande empresário. E ele se monta de drag para fazer show numa cidade próxima. Existem as nuances. O miolo é muito difícil de encontrar. Não só para mim, mas também para o figurino. Quando fomos experimentar a roupa, nos perguntamos: “Mas o que é o meio? Depois que as pessoas descobrem que ele é Shakira, como vai se comportar? Muda o figurino?”. Tem uma questão psicológica aí. Também na maquiagem, se ele vai para um lugar mais queer, de experimentação do corpo. Mas num curto espaço de tempo as pessoas não mudam tanto assim, ? Bem difícil esse meio do caminho, mas muito criativo, vivo.

Você se identifica com Ramirinho/Shakira em algum aspecto? 

São tantas questões pessoais que vêm junto disso. Meu pai é um servidor público. Então existe uma relação muito próxima da que tenho com a personagem de Fábio (o ator Fábio Assunção, pai de Ramirinho/Shakira e juiz da cidade de “Onde Nascem os Fortes”). Quando eu tinha uns dois ou três anos, a gente morava numa casa com um viveiro de aves. Meu pai criava coruja, vários pássaros da caatinga. E olha que coincidência: de repente, vejo na dramaturgia que o pai de Ramirinho tem um viveiro. São coincidências do trabalho que a gente faz, que tem uma psicologia intrínseca. Ela não se desprende em nenhum momento. Acho que não pode se desprender.

É mesmo quase uma psicanálise…

Tem um lugar terapêutico. E também muito violento. Mas são desconstruções. A personagem veio com um cunho político que eu queria muito trabalhar. Pedia para fazer uma personagem drag, uma travesti no cinema. Aí apareceu a Shakira. Entendi qual era minha responsabilidade por ter convivido com pessoas desse universo LGBT, ativistas. Por ter participado de um grupo de teatro em que a gente se montava, que tinha todo um trabalho de travestilidade. Eu tenho essa responsabilidade de dividir, dar entrevistas e de falar sobre isso. Comecei a entrar nesse universo, a estudar teorias de pessoas que escrevem sobre todo o universo gay, lésbico, LGBTQ, teretetêteretetê (risos). Mas sempre me interesso em ir um pouco mais a fundo. Tem escritoras teóricas, livros que tenho bisbilhotado e que me fazem crescer internamente. O desafio foi mais ou menos por aí. Tive que correr atrás, por mais que eu tenha presenciado grandes amigas que fizeram todo o processo de transformação, de tomar hormônio, de colocar silicone… Isso é muito próximo a mim.

“A trans é uma divindade. É um lugar que vai além das nossas possibilidades terrenas.”

Jesuíta Barbosa como Shakira | foto Raquel Cunha/TV Globo

Jesuíta Barbosa como Shakira | foto Raquel Cunha/TV Globo

Interpretar uma drag trouxe que percepções?

Acontece uma reação muito forte quando você faz uma personagem dessas. É o tal lugar de fala: “Como assim? Um ator vai fazer uma personagem que é drag? Por que não botaram uma drag de verdade?”. Tem toda uma questão que leva para um lugar de não-diálogo, não-debate. Tentei me proteger um pouco estudando o assunto. Tento misturar toda essa questão. Ramirinho/Shakira é a junção disso tudo. É uma drag, é um gay, é um universo possível, que inclusive pode ir para um outro lugar, como ele se apaixonar por uma mulher. E por que não? Tento não “nichar”, não encaixotar essa personagem.

Laerte diz que “a homo ou bissexualidade vem se tornando cada vez menos motivo de escândalo. Já a transgeneridade é alvo de muito mais preconceito”. O que acha disso? 

Ela está certissima. A trans é uma divindade. É um lugar que vai além das nossas possibilidades terrenas. Ainda que seja humana. Mas às vezes a gente não se coloca humanitário. Preferimos dividir, subjugar. A transexualidade transcende. Ela é um movimento de passagem completa. Mas tem as estatísticas. Esse país que, por um lado, é o que mais mata transexuais, é também o que mais assiste pornografia transexual. Tem uma explicação aí. É uma correlação espantosa, de medo. As pessoas têm medo. E a gente nasce para ter medo, isso é verdade. Mas é o combate que interessa. A coragem de não ir junto com uma maioria burra, que se junta numa massa porque gosta de repetir o que escuta, não quer pensar e estudar o assunto. A gente precisa combater isso. É importante ter Laerte como uma representante. Como uma pessoa que a gente não consegue encaixar em nenhum lugar. E nem ela, acho, se coloca em nenhum desses lugares. Ela, inclusive, nem sabe lidar. Ela tenta entender todo dia. A gente acorda para se entender. Quem somos nós para ficar julgando? Pelo amor de Deus!

“A dramaturgia tem que ser construída para a minoria. Não é a minoria aparecendo como minoria.”

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Qual o saldo de viver uma trans?

É bom ter essa personagem, a Shakira, como uma defesa. Um lugar que eu posso trabalhar, de liberdade pessoal. Chegar com essa personagem nas casas das pessoas, nas casas da minha família. De meus primos e primas, que sei que são preconceituosos. E eu, como familiar, e também como artista, poder desmistificar esse lugar. Para mim, é o mais bonito de fazer. E não só minha família. Primeiro minha família, e depois todas essas pessoas que chegam para dizer: “Nossa, realmente essa relação deles não é boa, ? O pai e o filho”. E eu digo: “Sim. Não é”. É o nosso papel de artista, e é bom que a televisão faça isso sempre. Porque outra questão que aparece é: “Agora todo projeto na TV tem que ter um gay?”. Escutar esse tipo de coisa, que é de uma irresponsabilidade, não consigo entender. Tem que ter um gay, tem que ter muitos. E tem que ter muito preto, religiões misturadas, sincretismo. Acho que falta uma linha de frente para essas minorias. A dramaturgia tem que ser construída para a minoria. Não é a minoria aparecendo como minoria. Aí está um lugar de criação que a gente ainda não tem na televisão. E que precisa ter. É linha de frente. Dizer que a história é uma história de amor entre dois homens, entende? Mas é todo um mercado, é toda uma questão de grana e de dinheiro que acaba subvertendo, me deixando desesperançoso. Mas estamos aí. A gente tenta se colocar forte do jeito que pode, e como pode.

“Me sinto disponível para ficar com qualquer pessoa, me comunicar, fazer qualquer tipo de sexo.”

Numa entrevista à revista Veja você disse que  fica com quem quiser – “sejam homens ou mulheres”, e que não quer se prender a rótulos como “gay” ou “hétero”. Como figura famosa, assumir a sexualidade pode servir como um ato de utilidade pública?

Pode. Sem dúvidas. E tem grandes artistas que fazem isso, colocam sua arte como um grito político, e admiro muito. Figuras como a Linn da Quebrada (MC, que se diz “artista multimídia e bixa travesty”), que acho a coisa mais fabulosa do mundo. Vou para o show e me arrepio imensamente. Tem essa questão fundamental, do direito LGBTQ. Existe uma necessidade de você se colocar em função da comunidade para que ela se engrandeça e possa se modificar. O que acontece é que eu consigo me colocar em nenhum desses lugares. Ainda que esteja em todos eles. Há algum tempo ouvi que existia essa necessidade: “Poxa, mas por que que você não fala que é gay? Porque a comunidade precisa ouvir isso”. Pensei bastante. E eu realmente não consigo me colocar como gay, porque… No momento que digo que fico com uma mulher, já vem alguém me colocar numa outra caixa, dizendo que sou bissexual. Então, vou começar a falar sobre pós-sexo. Ou contrassexualidade. Como desconstruir essas ideias? Porque você encaixota alguém, limita ela num lugar, e depois disso? E depois disso? O que a gente faz? Onde é que a gente vai conseguir se comunicar? Porque, a própria comunidade, às vezes, se enfrenta. Comecei a estudar essas teorias. Judith Butler, pessoas que pegam esse lugar e o desconstroem a partir da tecnologia, do plástico, de lugares que a gente não consegue colocar como nicho. Mas eu estou em todas essas comunidades. E sou em função delas. Em nenhum momento sou em função de uma comunidade totalitária, como a branca-heterossexual-preconceituosa.

Falta diálogo?

Acho importante colocar o hétero com essa possibilidade de conversa. A gente precisa se comunicar. A sigla LGBTQ inclui o heterossexual. Se a gente vai para uma parada gay, a parada gay é uma união. Ali não estão só as minorias. A gente quer que se junte todo mundo. A Veja, quando me perguntou isso, queria me colocar em algum lugar. E por mais que você tente explicar que não, não é sobre isso que interessa, o jornalismo vai para o lugar que é mais fácil, que vai vender, que as pessoas querem ler porque é um assunto do medo, que se coloca como mistério. E que na verdade não é para ser. Sexo é para ser desprendimento, uma ligação, um fluxo de energia que vai muito além de qualquer caixa dessas. Então, me sinto disponível para ficar com qualquer pessoa, para me comunicar, para fazer sexo com qualquer pessoa, qualquer tipo de sexo. Estou mais interessado em subverter do que me limitar. Não quero me limitar de jeito nenhum.

“Sou feliz quando me calo, quando escuto alguma parte do meu corpo que não minha cabeça, meu cérebro.”

No videoclipe da música “Flutua”, cantada por Johnny Hooker e Liniker, você e o ator Maurício Destri interpretam um casal gay, e um deles sofre uma agressão na rua. A letra diz “Um novo tempo há de vencer, pra que a gente possa florescer. E, baby, amar, amar, sem temer”. Acredita que esse tempo vai chegar?

Esse tempo é agora. Já. Essa música fala dessa necessidade, porque as pessoas precisam ouvir sobre isso. Mas a gente tem que colocar como esse lugar de agora. Não tem depois. Claro que mudanças precisam acontecer, e temos que ganhar direitos, estabelecer esses diálogos. Mudar a cabeça das pessoas, de pessoas próximas, inclusive, que acho que é o mais importante de se fazer, se conectar com a família e modificar. Com isso já fico muito feliz. Entender que as ideias de meu pai e minha mãe, de minha família materna, hoje são outras depois que entrei na arte, comecei a trabalhar com isso.

Se não fosse ator…

Acho que trabalharia com movelaria, madeira.

Você tem religião, acredita em Deus?

Acredito numa força, mas não sei onde ela está, quem é ela. Ao mesmo tempo acredito numa função muito minha, que tudo parte de mim. Acredito num Deus interior. Gosto muito de meditar. Talvez seja o meu lado espiritual. Tira um pouco da ansiedade de hoje em dia, tudo muito corrido. As pessoas estão enlouquecidas com eletrônicos e tal. Fiz um retiro espiritual budista, Vipassana, que é muito legal. Fiquei dez dias em silêncio.

Jesuita_JamesDean

A gente vive em busca da felicidade plena. Onde ou no que você encontra a sua?

Em coisinhas pequenas. Hoje me sentei na frente do mar e me senti muito feliz. Depois corri, corri, corri na praia e quando parei me senti mais feliz ainda. Me sinto feliz quando não problematizo as coisas. Quando me calo, quando escuto alguma parte do meu corpo que não minha cabeça, meu cérebro (risos).

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