NELSON MOTTA: O PRODUTOR EM DIAS DANÇANTES E SUAS PARCERIAS MUSICAIS
Nelson Motta, você definiu seu livro “101 canções que tocaram o Brasil“ (editora Sextante) como uma trilha sonora da nossa história e de nossos sentimentos. Qual seria a trilha sonora da sua vida?
Tive músicas muito marcantes em diversas épocas. A primeira, “Chega de Saudade“. Eu tinha 14 anos e nem ligava para música, quando ouvi João Gilberto no rádio e fiquei louco. Outra que mudou minha vida foi “Dancin’ Days”. Minha geração passou pela ditadura, todo mundo era sério para caralho, tinha que ser… Ninguém aguentava mais. Começou uma aberturazinha política, fiz a discoteca Dancin’ Days, em 1976. Foi uma libertação para mim e para todo mundo da época, porque as pessoas não aguentavam mais sofrer, reclamar. Queriam dançar, se divertir, não podiam. Porque havia gente morrendo na tortura, e você ali, bebendo… Era uma patrulha também horrorosa.
E como foi partir para a onda disco?
Era um compositor sério, de MPB, mas caí na onda disco sem o menor pudor. Fiz a música “Dancin’ Days” por causa da boate. Já tinha feito “Perigosa, bonita e gostosa”, com a Rita Lee, um rock ‘n roll. Naquele tempo não era de bom tom gente da MPB fazer rock. Raul Seixas e Rita Lee e olhe lá… Não tinha rock ‘n roll no Brasil. Era uma coisa colonialista, imperialista, era tudo de ruim, desqualificante. Mas fiz um puta sucesso popular com essas músicas, me diverti, ganhei um monte de dinheiro. Outra música importante para mim foi “Como uma onda”, com Lulu Santos, de 1981. Já é o pop brasileiro se formando, o rock começa na verdade em 1980. Não tinha rock com ditadura, não pode se pedir autorização para ser rebelde. Só com a abertura política e o fim da censura que vieram Lobão, Paralamas, Kid Abelha…
Qual sua maior lembrança da boate?
Era uma coisa de louco, uma lenda porque durou só quatro meses, emendando dia e noite praticamente. Cabiam umas 600 pessoas, no Shopping da Gávea, uma discoteca linda, com arquibancada, pista de dança, DJ e música ao vivo. Foi um sucesso espetacular, ia todo mundo: estrelas da Rede Globo, velhos comunistas, caras da Academia de Letras, putas, surfistas, gays, pretos, brancos, vagabundos… Tinha de tudo ali, e isso era o segredo do sucesso. Era igual cinema: pagou, entrou. Achavam que era jogada de marketing, mas fechou no dia combinado, virou lenda. Ficou no imaginário como lugar de libertação, onde podiam dançar, escancarar, botar para fora mesmo… As Frenéticas (grupo formado por Sandra Pêra, Lidoka, Leiloca, Regina Chaves, Dhu Moraes e Edyr de Castro) eram garçonetes que cantavam três ou quatro músicas no fim da noite. Época maravilhosa na minha vida.
“Sempre achei a Lady Gaga interessante, maluquete mas muito inteligente e talentosa. […] É maravilhosa.”
Dessa trilha, alguma mais romântica?
“Bem que se quis”. Ouvi a música quando morei na Itália, nos anos 1980. Conheci Pino Daniele, um compositor fantástico, e fiz esta versão. Não tem nada a ver com a letra original. Levei dois anos fazendo esta música, que percorreu muitos caminhos até chegar a Marisa Monte, que tinha 19 anos quando comecei a trabalhar com ela. Foi um grande sucesso popular, as pessoas ficavam emocionadíssimas. É uma grande canção de amor, dramática, uma coisa de abandono. Nos anos 1990 morei nos Estados Unidos e não estive muito ligado com música, mas com jornalismo, televisão, literatura…
Uma última música?
“O outro lado do Rio”, do Jorge Drexler, do final dos anos 1990, ganhou o Oscar pelo filme de Walter Salles, “Diários de Motocicleta”. O Drexler é o compositor mais interessante que conheci nos últimos 15 anos. De lá para cá, segui toda a carreira dele, que acabou gravando “Como uma onda”.
O que você anda ouvindo?
Ultimamente, escrevo mais do que ouço música. Quando caminho de manhã pela praia, boto no iPod alguma coisa que recebo e vou ouvindo, vou depurando meu iPod. Chego em casa e tiro o que não gosto. Tem Billie Holiday, Nelson Freire tocando Debussy… Coisas novas entre compositores ou amigos que me interessam, como o disco novo do Lenine, do Marcelo D2… Pouca música internacional. Alguma canção da Turquia, percussão dos Balcãs… O disco mais bonito que ouvi nos últimos meses foi o da Lady Gaga com o Tony Bennett cantando clássicos do jazz. Virei fã dela. Sempre achei interessante, maluquete mas muito inteligente e talentosa. Cantando standards de jazz, músicas que foram cantadas pelas divas… Ela segura a onda com estilo. É maravilhosa.
“Se o HD mental estiver cheio você fica catatônico, vira uma geleia de recordações.”
Você já disse uma vez que tem horror a nostalgia. Mas música nos remete um pouco a isso…
E continuo tendo. O maior poder da música é sua capacidade evocativa. Você ouve e lembra de uma pessoa, de um cheiro, de um sabor… Tenho pavor de nostalgia porque acho que é o que mais envelhece. É você ficar vivendo do passado, se consolando com o passado, tendo saudade… É o pior de tudo. Eu evito. Muitas vezes tenho que olhar para trás. Recebi o Grammy. O que eu fiz? Prestei serviço para música. Fui produtor da Elis Regina, da Marisa Monte… Então tive que olhar, mas é só uma passagem, não vou parando muito em um momento porque é tão bom. Não me entrego a essa nostalgia.
Então é só presente e futuro?
Tenho essa felicidade de ter um passado majoritariamente prazeroso. Mas só penso no hoje, no amanhã. Vivo da minha memória, escrevo sobre isso. Uma coisa maravilhosa, a principal função da memória, é o esquecimento. Se a gente não esquecesse, seria um fluxo contínuo de recordações se misturando com os momentos. A memória deixa o que vale a pena, porque não dá para ter tudo. Se o HD mental estiver cheio você fica catatônico, vira uma geleia de recordações. Quero aprender com meus erros, faço questão de lembrar. Estou sempre fazendo novos erros, mas não repito.
Mas ter saudade também não nos leva ao passado?
Digo que não tenho saudade de nada, porque vivi intensamente cada momento. Não ficou faltando. Ah, podia ter viajado tanto, podia ter… Podia nada, fiz tudo! Tive cinco casas noturnas, era uma fantasia que tinha, amava a noite desde adolescente. Depois, com uns 40 anos, parei tudo. Passei metade da minha vida dormindo às 7h da manhã, a outra metade seguinte acordando às 7h. Gosto de acordar cedo. Foi biológico, fisiológico, não aconteceu nada em especial. Com 40, tinha vivido 20 anos “intensissimamente”, já deu, né? Querer ficar esticando coisas…
“Para ganhar aquele autor obscuro da Bulgária… É melhor que ganhe o Bob Dylan mesmo.”
(Sobre o Prêmio Nobel)
Você recebeu o Prêmio da Junta Diretiva da edição 2016 do Grammy Latino. Prêmios são importantes?
Como não sou Bob Dylan nem Marlon Brando (que não foram receber seus prêmios, um no Nobel, outro no Oscar), para mim são importantes. Um prêmio internacional como o Grammy, uma surpresa, fiquei emocionado, nunca havia me passado pela cabeça. Mas não preciso dos prêmios para saber o valor das coisas que fiz. Tenho boa distância crítica das boas, das mais ou menos e das ruins também. Não tem esse sentido para mim. É muito prazeroso, uma alegria enorme, um luxo… Mas não é uma necessidade.
O Nobel de Literatura de 2016 criou polêmica e foi criticado por ter sido dado não a um escritor, mas a um músico…
Sou fã do Bob Dylan desde os anos 1960. É um poeta extraordinário. Mas é também um músico, isso não pode ser desconsiderado, digo, em favor da música. A poesia do Dylan existe, foi feita, em cima de uma música, de uma melodia, de um ritmo. A música não é só um suporte para as letras dele. É parte integrante. Então é uma sacanagem com o músico Dylan. Ele tem grandes músicas, que podem ser tocadas sem letras que são boas. Chico Buarque em menor proporção… O Dylan é um músico fudido, um monstro, com melodias incríveis, no primeiro time não só como poeta. Nunca levei esse Nobel muito a sério. Não é um juízo definitivo sobre nada. Para ganhar aquele autor obscuro da Bulgária… É melhor que ganhe o Dylan. Tem politicagem também.
Uma jogada de marketing da Academia sueca?
Há anos o Dylan vinha sendo cogitado. E é uma polêmica interessante. Essa interação de música e palavra, onde começa a literatura e acaba a música… Mas é claro que há muitos escritores que mereceriam mais que o Dylan a essas alturas da vida, como o Philip Roth, que eu acho o melhor escritor americano, e está vivo. Tem uma obra literária muito mais sólida do que o Dylan. E o que acharia mais engraçado seria o Keith Richards ganhar o Nobel de Química (risos).
“Eu não estava apaixonado por ela, nada disso.”
(Sobre Marisa Monte)
Na década de 1980, Marisa Monte, ainda longe da fama, se apresentava em bares do Rio. Em um desses, estava você. Podemos dizer que ela teve sorte?
Eu tive também. Antes de ver a Marisa em um bar, a vi cantando em Veneza. Morava em Roma e fui até lá para ver a Marisa com 19 anos, cantando em um barzinho com um amigo dela, violinista italiano. Já conhecia a Marisa, mas só tinha visto ela cantarolando. Marisa foi ser cantora lírica na Itália. Estava desistindo, ia voltar de Veneza para o Brasil. Pensei, o que fui fazer? Pegar avião e ir até Veneza para ver uma coisa amadorística? Não estava apaixonado por ela, nada disso. Mal a conhecia. Um acaso, uma coisa que mudou a música brasileira. Aí começou a Marisa, que foi outro patamar de música brasileira, de intérprete…
A MPB vai bem, ou existe uma carência de novos talentos como Cazuza, Renato Russo e Cássia Eller?
Estão sempre aparecendo. Os mais recentes foram Maria Gadú, Roberta Sá, Emicida, Criolo… Tem rappers espetaculares no Brasil. A Karol Conka é ótima. Flora Mattos, maravilhosa. Mas é duro aparecer uma Marisa Monte, uma Cássia Eller, uma Gal Costa… É raro. É uma a cada dez anos, quanto tem. A Anitta, acho fofa. Claro que está longíssima do patamar dessas, mas é uma garota muito interessante. Na Olimpíada foi brilhante, uma ótima ideia do Caetano, em vez de fazer só dois coroas (Caetano Veloso, Gilberto Gil e Anitta se apresentaram na abertura dos Jogos Olímpicos do Rio), foi uma coisa nova, fresca, e ela deu conta. É inteligente, divertida. Um outro tipo de música, que não vive por si mesma. Não é melhor nem pior, mas uma forma de expressão absolutamente contemporânea. Hoje, a música é mais imagem do que música.
Você já compôs mais de 300 músicas. Quem seria seu parceiro se tivesse que escolher apenas um para o resto da vida?
Lulu Santos é meu maior parceiro. Aliás, vou contar uma coisa: este ano, o disco do Lulu vai ser só com nossas músicas. Ele pesquisou e viu que temos umas 18 ou 19 músicas. Escolheu um top 10, e temos mais uma inédita que fizemos em 2015, que chama-se “Tempo em movimento”. Isso mostra essa identidade que tenho com o Lulu, que as minhas palavras têm com as músicas dele. Agora, adoraria fazer milhões de músicas com a Rita Lee.
“Nunca perdi um amigo por causa de política nem vou perder. Acho de uma estupidez.”
Mas você compôs também com outros grandes da MPB…
Com o Djavan, fiz em 2015 uma música que estava com a melodia há mais de dez anos. Djavan gravou com uma cantora portuguesa. Foram três músicas com ele. Meu parceiro mais recente, que estou adorando, é o Ivan Lins. Fizemos um fado, “Primavera em Lisboa”, lindíssimo, comovente. Um fado meio bossa nova. Muitas vezes na minha vida escolhi meus parceiros.
Você também se dedica às versões, como fez com “Bem que se quis”…
Fiz muitas, a principal foi “Bem que se quis”. Quase todo ano faço uma versão para Maria Bethânia, que me pede. Ela pega a música que quer, e faço a letra. Ela é danada nas escolhas… É uma das raras pessoas que não consigo ficar à vontade perto. E é minha amiga há mais de 50 anos. Bethânia é uma entidade, mas faz tudo para não ser: é carinhosa, divertida… Caetano (Caetano Veloso, irmão da cantora) diz que é a pessoa mais inteligente da família, e eu tendo a concordar com ele.
Com a crise política que culminou com o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, em 2016, muitas pessoas desfizeram amizades no mundo real e virtual. De que forma lidou com isso?
Nunca perdi um amigo por causa de política nem vou perder. Acho de uma estupidez que não combina com pessoas inteligentes. Tenho uma posição equilibrada de maneira geral. Quando fiz 70 anos teve uma crônica do Reinaldo Azevedo (colunista da revista Veja), que é um cara considerado de extrema direita… Não é nada, é um conservador. A crônica inteira falava bem de mim. Dois dias depois, o Francisco Bosco (então colunista do jornal O Globo), petista de carteirinha, conheço ele de criança mesmo, e gosto muito dele, escreveu “O mais querido”, e era eu. Falando sério da minha posição, do meu equilíbrio e delicadeza que faço questão de preservar. Tenho muitos amigos petistas, e não se fala de política, não é fundamental. A política é sórdida, é o baixo nível, a escória brasileira. Então, vejo pessoas de bem, honestas, bem intencionadas, ali brigando, sofrendo por bandidos. De um lado e de outro.
Você já escreveu que maus políticos são indestrutíveis como vampiros. Explica um pouco isso…
Esses políticos no Brasil são indestrutíveis, como o Sarney e tudo o que ele representa. Mas a vida faz justiça. Vi que de 5 mil e tantas cidades do Brasil, o último lugar, pior nível de vida, é na cidade que se chama Presidente Sarney, no Maranhão. Fez justiça… Esse filho da puta que teve décadas no poder e levou milhões para o Maranhão como senador, com o poder que tinha em Brasília. Roubaram tudo e é um dos estados mais miseráveis, isso que é o pior. Temer é outra linha de vampiros, o Renan… São indestrutíveis. Renan já passou para o filho, o Jader Barbalho… Estão proliferando, encarnados nos filhos.
“Você não acaba conhecendo melhor mulher, isso nunca. É uma ilusão.”
Você se casou quatro vezes, tem três filhas e é um galanteador… Os homens sensíveis sempre ganham mais pontos com as mulheres? Como é seu lado feminino?
O fator feminino foi fundamental na minha vida. Fui muito próximo da minha avó paterna, minha mãe, irmãs. Sou das minhas filhas. Você não acaba conhecendo melhor mulher, isso nunca. É uma ilusão. Mas pelo menos que se divirta no percurso, porque mulher é muito complicado. Tenho duas netas, um neto — o homem da minha vida, tem 20 anos e é um espetáculo, inteligente, amoroso, tudo de bom. Eu galanteio, faço muito charme e agrado minhas filhas e outras mulheres. Com as filhas é melhor, eu não tinha disposição para brincar com menino, jogar bola, luta… Com meninas são filmes, livros, inventividade, coisas românticas… Não tem força bruta. Então, você se adoça um pouco também.
Somos mesmo sozinhos e morremos sozinhos?
Nascemos e morremos sozinhos. Eu já dei por definitivo isso, então não penso mais. Tenho 72 anos, se for começar a pensar no amanhã, na semana que vem… Vou à loucura, vou sofrer à toa. Melhor viver o meu dia, dar graças a Deus por mais um dia. Às vezes com grandes coisas acontecendo; outras vezes, cagadas… Mas e aí? A vida continua. Saúde é que é foda, porque aí não tem jeito. O resto todo tem jogo.