ISABELLA PARKINSON: UM ATRIZ “ALEMÔ, NASCIDA NO BRASIL, QUE SÓ QUER SABER DO QUE PODE DAR CERTO E SE DESPRENDER DOS ESPELHOS
Isabella Parkinson, você é membro da Deutsche Filmakademie e da European Film Academy. O que significa isso exatamente?
Como acontece com as academias em geraL, você indica filmes, tanto para o European Film Award quanto para o prêmio da academia de cinema alemã. O grande barato para mim é receber 40, 50 filmes que foram relevantes. Ver todos e votar para melhor ator, atriz, etc. E tem milhões de atividades paralelas interessantíssimas. A academia europeia é mais ou menos ativa politicamente, e a alemã é bastante ativa. Há muitos encontros para discussão de roteiro. Uma das iniciativas da academia europeia de cinema foi o filme “Co/Ma”, que fiz com o Mike Figgis [o diretor inglês selecionou 19 cineastas europeus para filmar na Eslovênia com o desafio de em apenas sete dias conceber, dirigir, editar e exibir o filme no dia seguinte para o público].
E por que você foi convidada para fazer parte da academia europeia de cinema?
Não tenho a menor ideia. Em 1999 me convidaram para entregar um prêmio dedicado a europeus que têm voz no cinema internacional. Entreguei ao Roman Polanski. A partir do ano seguinte eu fazia parte da academia.
Até agora você fez 13 filmes para cinema, nove curta-metragens, 25 filmes para TV na Europa [exibidos principalmente nas redes ARD, RTL e ZDF/Arte] e 12 peças teatrais [muitas no Volksbühne, de Berlim, onde chegou a ser parte do elenco fixo]. No Brasil, foi dirigida no teatro por Ary Coslov, em “Traição”, e por Gerald Thomas, em “Mattogrosso”, e na TV fez, entre outros trabalhos, a série JK da Globo, com direção do Dennis Carvalho. Por que a balança pende mais fora do que no seu próprio país?
Eu estudava jornalismo na PUC [universidade carioca], e queria ser atriz. Um amigo me chamou para um teste para a peça do Gerald Thomas. Eu cresci viajando, mas sendo muito uma menina do Rio. A Zona Sul do Rio de Janeiro é uma pequena prisão com códigos muito claros. E o Gerald chegou fazendo uma confusão na minha cabeça e na de uma geração inteira. Chegou com um negócio muito revolucionário. Me disse: “O que você está fazendo aqui? Vai para Nova York”. Fui. A maior parte das decisões que tomei na vida vida foram impulsivas e intuitivas. Na verdade, sou brasileira, mas sou uma atriz alemã. Minha história fiz em outro lugar. Fui parar em Berlim para fazer uma peça, e logo depois fui convidada pelo Castorf [Frank Castorf, então diretor do Volksbühne, considerado uma dos mais instigantes teatros da Alemanha contemporânea].
“Não me considero uma atriz brasileira porque não tenho uma carreira aqui.”
Por que você não se considera uma atriz brasileira?
Não fiz minha história no Brasil. Tenho saudade de trabalhar na minha língua, mas não me considero uma atriz brasileira porque não tenho uma carreira aqui. Logo depois do Gerald, não tinha feito nada em português. A primeira vez que fui trabalhar falando em português de novo foi em uma peça em Lisboa, no início dos anos 2000. Foi estranho porque me senti muito presa, trabalhando depois de dez anos fora na minha língua. Me sentia completamente exposta. É mais fácil dizer “I love you” do que “Eu te amo”. Para o ator, é como o personagem. O personagem dá a liberdade absurda de expor aquilo que nos é mais íntimo porque estamos fazendo aquilo por meio de um personagem. No momento que você tira o personagem, é mais difícil tocar em certas questões, de se expor. Expor a dor, as não-conquistas. Nos expor naquilo que somos falíveis, nos nossos erros.
Ficar nua seria um dificultador?
Não gosto de nudez. Já fiquei pelada em cinema, acho um saco. Já fiquei pelada em cena, mas não gosto porque o corpo nu é sempre o corpo daquele ser humano. Porque aquele peito não é o da Lady Macbeth, é o da Isabella. Enquanto que um corpo vestido eu posso ser gorda, ser homem, não ter peitos ou ter peitos enormes. Você tem um lugar mais de brincadeira.
Então, você recusaria um papel que tivesse cenas de nudez.
Não, nunca recusei. Mas tento argumentar se aquilo é realmente necessário. Às vezes eu ganho, às vezes perco (risos). A nudez é uma questão muito interessante. Depende da forma como ela é exposta. Vi recentemente o “Pendular”, filme da Julia Murat, que tinha umas três ou quatro cenas de sexo. E era incrível, porque contava a história daquele casal. Era um sexo de verdade. Tudo depende. Depende se contribui para a dramaturgia ou não. Porque no final das contas somos contadores de histórias. Como contar uma história? Com um elemento que vai acrescentar mais uma camada à história ou com um elemento que vai tirar a atenção? Vou olhar e pensar: “Como a Angelina Jolie é gostosa” ou, “Cara, olha que cena de sexo incrível”. Como contadores de história a gente está sempre à procura de eliminar excessos. Porque o excesso tira o foco.
“Eu não me exporia a isso jamais.”
(Sobre a polêmica cena de sexo entre Maria Schneider e Marlon Brando)
Você não faria a cena que a Maria Schneider fez em “O último tango em Paris”? [filme do Bernardo Bertolucci, que provocou escândalo na década de 1970 por suas cenas de sexo e nudez, incluindo a da manteiga, protagonizada por Marlon Brando].
A cena faz um grande sentido ali, onde se conta a história de um jogo de poder. Hoje a gente sabe que aconteceu de verdade, e eu não me exporia a isso jamais. Não posso falar por todo mundo. Atores são diferentes no approach. Diretores inseguros, vêem atores como mera marionete. Na verdade, a maioria dos atores que conheço e eu me incluo nisso, adora estar nas mãos de um diretor brilhante não como marionete, mas como um guia. Ou seja, somos pessoas inteligentes, estamos contribuindo para essa dramaturgia, nos deixe fazer parte desse processo, vamos pensar juntos. As coisas florescem do encontro. Porque é um trabalho que acontece no coletivo.
Os diretores com quem você trabalhou sempre se mantiveram nessa linha, ou foram mais ditadores, mais opressivos?
A Alemanha tem uma tendência, porque desde os anos 1970, o teatro, especialmente, é visto como um teatro de diretor, um teatro autoral. Tem a cultura do diretor autoritário, que primeiro vem e destrói um ator para que ele esteja nu. Eu não preciso disso. Acho meio desgastante. Porque você já vai se desconstruir de qualquer forma. Se eu chegar com uma enorme persona, o persona não funciona. Funciona a pessoa, a persona é uma mentira. E a persona não comunica, quem comunica sou eu, pessoa verdadeira. Não tenho a menor necessidade de uma pessoa autoritária me destruindo. Então, eu nunca atraí isso. Alguns malucos com quem trabalhei nunca cruzaram essa fronteira comigo. Mas já vi acontecer. Com o Castorf mesmo. Cheguei a sair da sala de ensaio mais de uma vez, tipo: “Galera, na hora que acabar ali o show, por favor, me chame de volta. Se não vou lá dar um soco na cara dele”.
E com o Gerald, que é um diretor considerado polêmico, foi uma experiência tranquila?
Eu tinha 19 anos, a minha vida se desenrolou de uma outra forma. Ela talvez tivesse ido para um lugar completamente diferente se o Gerald não tivesse cruzado meu caminho. Então eu tenho amor, nunca vou deixar de ter esse afeto. E gosto do trabalho dele. É uma das pessoas mais cultas e inteligentes.
Em 2001, você foi premiada como melhor atriz no Festival de Cinema de Monte Carlo pelo filme “The wedding cow”, uma comédia romântica dirigida pelo suíço Tomi Streiff. Esperava ganhar esse prêmio?
Não pude ir receber o prêmio, porque minha filha havia acabado de nascer e ainda não tinha certidão de nascimento para viajar. O prêmio foi entregue pela Claudia Cardinale [atriz italiana, musa dos diretores Visconti, Fellini e Sergio Leone].
“Sou completamente fascinada pelo Xavier.”
(Xavier Dolan, diretor canadense)
Tem algum diretor com quem você gostaria de trabalhar?
Inúmeros. Para mim, um grande índice de que um diretor fez um trabalho incrível é quando todos os atores estão no mesmo lugar, estão todos no auge. Não vou fazer uma lista, mas sou completamente fascinada pelo canadense Xavier Dolan [diretor de “É apenas o fim do mundo”, filme com Vincent Cassel e Marion Cotillard]. No Brasil, tem pessoas interessantíssimas. Enrique Dias, Cesar Augusto, Nelson Baskerville.
Das atrizes que estão aí, qual você mais admira?
Cate Blanchet. Ela faz qualquer coisa de forma absurdamente plena. De vez em quando você vê atores que atuam como se estivessem se olhando no espelho. Acho que desprender-se do espelho, como artista e na vida, é muito importante. Mesmo que a gente saiba que o olhar de dentro é completamente diferente de como a gente está imprimindo. Numa situação cotidiana, às vezes você acha que estava gentil e dócil, mas o outro te percebeu completamente fria e grosseira. Isso existe atuando também. Já me aconteceu de falarem que a cena estava ótima, e eu pedir para fazer de novo, porque achei que estava tão não-verdadeiro. Ao mesmo tempo já achei que uma cena foi incrível, vendo isso nas pessoas com quem contracenei e achando: “Nossa quanta verdade”. E quando você vai ver, imprimiu igualzinho aquela cena que achava mentirosa. A câmera tem um filtro muito estranho. Teatro é diferente, porque é mais imediato e mais perigoso de uma certa forma, porque o perigo é iminente.
“Não achei sequer que fosse possível ter seis peças decoradas [em um ano]. É possível.”
O ator francês Vincent Cassel costuma dizer que não quer a proximidade que a TV promove com o público. Para ele, em novela o ator fica sem tempo, tem que produzir muitas cenas, o que estraga um pouco o ator, porque ele perde a sutileza em atuar.
Nunca fiz novela e acho que também não teria disponibilidade para essa dramaturgia repetitiva. Faço filmes para a TV, obra fechada de 90 minutos. TV e cinema são diferentes porque a TV, mesmo roteiros de filme para TV na Alemanha, tende a ser menos visual e mais radionovela. É uma dramaturgia mais falada. Gosto de obras fechadas. Acho o formato das minisséries incrível.
No cinema ou na TV existem recursos técnicos para superar qualquer erro. No teatro, não. Foi sempre tranquilo atuar em alemão nas peças que você fez?
Fui parar na Alemanha por circunstâncias da vida e já era atriz. Então aquilo se tornou o grande objetivo. Ou falava alemão ou não ia poder ficar ali. Dei muita sorte, porque fiz apenas uma peça em Viena e uma em Berlim e fui direto para o Volksbühne, que é um teatro de repertório. No primeiro ano estava em cartaz com seis peças, trabalhando o tempo todo. Isso vai te dando um jogo de cintura com a língua. Não achei sequer que fosse possível ter seis peças decoradas. É possível. No começo trabalhei com um coach de línguas que me corrigia. Na vida cotidiana não, mas no momento que decorava um texto, começava a falar um pouco articulado demais. No cinema, por conta dos recursos técnicos, você tem a possibilidade de corrigir o erro. No teatro, não. Mas no teatro você passou um mês ou quatro meses se jogando no erro. O processo de ensaio é um pouco isso: se aventurar no erro e construir as camadas, passar os erros na peneira e deixar só os acertos.
Somos seres naturalmente inseguros, para mais ou para menos. Como você trabalha a sua insegurança quando está atuando?
Eu não sou uma pessoa… Mentira. Eu ia dizer que não sou uma pessoa extremamente insegura. É mentira. Eu confio em mim mesma. Sou minha amiga, nem sempre… mas bastante. Ao mesmo tempo, como você vai começar um processo criativo cheio de certezas? As certezas são inibidoras de qualquer processo, progresso. É uma merda chegar cheio de certezas. Mas você tem que ter um mínimo de intimidade com aquilo que você está fazendo, porque a total incerteza também é uma merda. A total insegurança te joga num lugar de estar seguro demais. Não sei, é tênue, um lugar delicado. Aí tem dias que a gente volta para casa e diz acertei, outros que a gente diz puta que pariu, que merda. O palco é foda. Tem dias que você entra e diz ”Uhu, vamos fazer esse espetáculo hoje, que ótimo”. Estou ali com as rédeas na mão. E tem dias que você entra e… “Caralho por que que eu faço isso comigo mesma? Tomara que essa merda acabe logo, que horror, como é que a gente pode se expor assim?”.
“Os momentos de fragilidade nos deixam verdadeiros, porque a gente não tem energia para criar resistências.”
O estado de espírito deve influenciar, nesse sentido, quando se está no palco.
É meio louco dizer isso, mas gosto de trabalhar gripada, doente ou tendo uma questão pessoal enorme. Doente, você só tem energia para produzir aquilo. Automaticamente você se livra dos excessos. Que é bom, tem uma pureza. E, perversamente falando, acho que os desafios emocionais que a gente tem na vida são ferramentas interessantes, porque ou a gente coloca de lado ou … Enfim, todas essas coisas que nos deixam puros e sem a consciência do espelho. Os momentos de fragilidade nos deixam verdadeiros, porque a gente não tem energia para criar resistências.
Você está em Berlim desde 1993. Em que momentos você se sente mais estrangeira morando fora?
Fui embora para quando eu tinha 19 anos. Na minha observação e nas conversas com pessoas que têm uma biografia semelhante, pessoas que saíram e foram construir uma história num outro país, elas nunca mais conseguem ser 100% de algum lugar. Me sinto estrangeira também no Brasil, às vezes. Mas o lugar em que eu me sinto mais pertencente no mundo, meu útero, é o mar da praia de Ipanema. Não é o Brasil. Mas também não me sinto muito estrangeira, não, morando lá.
“É uma sociedade predisposta a se reinventar.”
(Sobre a Alemanha)
A propósito dessa questão do pertencimento, Angela Merkel [presidente da Alemanha] foi muito criticada pela política que favorece refugiados vindos de outros países. Mas Berlim já é uma cidade atípica na Alemanha, por acolher bem estrangeiros. Como você vê essa situação?
A Merkel foi extremamente criticada por um político do partido cristão, mas jamais se fechou ao diálogo. Vejo na Alemanha uma sociedade se repensando. Há muito tempo que eles caíram de cara na própria história, tirando o lixo debaixo do tapete para entender e não refazer erros. O nazismo e a Segunda Guerra estão sempre deixando as pessoas em alerta. No geral, é uma sociedade predisposta a se reinventar. Essa questão dos refugiados é inevitável, ela existe. Se posicionar contra ou a favor é completamente redundante. E tem a crítica de alguns sobre Alemanha se abrir assim. Mas como a Alemanha, que matou os próprios cidadãos, que forçou tantos alemães a procurar o exílio, como ela pode fechar as suas portas? É moralmente inaceitável. A grande questão é defender o Estado democrático. E servir como ‘Leitkultur’: se abrir para diferentes culturas mantendo a própria, com esse Estado domocrático como cultura líder à qual as outras precisam se adequar, e não o contrário. O que faz sentido.
Atores, teoricamente, choram com mais facilidade. O que te faz chorar?
No dia a dia, tudo, até o Jornal Nacional me faz chorar. Crianças na rua, atitudes déspotas me fazem chorar. Atuando adoro cristalzinho japonês (risos). Mas consigo ficar mais emotiva pelo lado físico. Se dou uma corridinha e fico sem fôlego, já posso começar a chorar. Não gosto da memória afetiva. Acho música um grande recurso para te colocar num “estado de espírito”. Tenho muitos personagens com playlist.
“Envelhecer não é divertido.”
Pensar que você não vai viver para sempre te angustia?
Envelhecer não é divertido. É uma questão de ir fazendo acordos consigo mesmo. Não penso muito na minha finitude. Até porque espero que ela ainda seja uma coisa distante. O que mudou para mim radicalmente é: “Eu não tenho tempo a perder”. Isso, não necessariamente com angustia, de uma forma bem positiva. Eu quero relações de troca. Ou é para estar junto, ou como dizem os Titãs: “Eu só quero saber do que pode dar certo”. Por isso me tornei um pouco intolerante com pessoas, com situações. Não vou ficar horas discutindo o óbvio.
E você é feliz?
Às vezes. Não sei se sou feliz. Me esforço para ser alegre. Sempre fui uma pessoa muito melancólica, levemente existencialista. Embora melancolia não seja uma tristeza, é uma tristeza poética, um lugar até gostozinho de se estar. É importante tentar ser alegre. Porque a alegria faz com que a gente passe por momentos de tristeza com mais doçura, poesia, leveza.