Laerte

Laerte, cartunista | Fevereiro 2017

 LAERTE: A CARTUNISTA DIZ O QUE PENSA SOBRE OPÇÃO DE GÊNERO, MACHISMO E POLÍTICA

por Heloisa Eterna | foto Claudia Ferreira |

Laerte, você renegou sua homossexualidade por 40 anos. Assumir foi também se livrar dos próprios preconceitos? O que passava pela sua cabeça antes disso?

Esse bloqueio por tanto tempo se deve ao pânico que senti. Não havia, à minha vista, pessoas homossexuais em paz consigo mesmas, vivendo relacionamentos comuns. Namoros não eram namoros, eram “caso” — e assunto de fofocas e malícias. Achei que a minha vida se tornaria um pesadelo se eu aceitasse o desejo por homens. Essa aceitação, ainda que tardia, foi libertadora — para citar a bandeira de Minas.

Você já disse acreditar que um dia a sociedade vai compreender todas as possibilidades envolvidas nos relacionamentos. Isso já acontece em maior escala na Europa. Pode vir a ocorrer o mesmo no Brasil a médio ou a longo prazo?

Acontece na Europa? Talvez em alguns lugares, em outros nem tanto. Em alguns países a direita combate conquistas sociais que julgávamos garantidas… Em nosso país, alguns direitos vêm sendo conseguidos, mais por decisões judiciais do que por elaborações legislativas. É um processo longo.

Muitos famosos têm medo de revelar sua opção de gênero, para não comprometer a carreira, e se calam. Não acha que o caminho para a aceitação poderia ser encurtado se figuras públicas revelassem sua opção?

Por “opção de gênero”, entendo a transgeneridade, uma vez que ser cisgênero não significa perigo algum. Ou estamos falando de orientação sexual? Nesse quesito, em sintonia com a declaração recente da Daniela Mercury, a homo ou bissexualidade vem se tornando cada vez menos motivo de escândalo. Já a transgeneridade é alvo de muito mais preconceito — não sei avaliar se entre artistas, mas, seguramente entre pessoas de classe média e alta. Não há como obter um levantamento preciso, mas, atualmente, deve ser o principal motivo por que pessoas se mantêm dentro do armário.

“Eu pensaria numa cirurgia genital se tivesse algum tipo de desconforto com a minha genitália, coisa que nunca tive e nem tenho hoje.”

Ser mulher tem algumas desvantagens, como, por exemplo, frequente assédio sexual e moral. Depois que assumiu sua transexualidade passou por algum constrangimento nesse sentido? 

Tenho sido tratada com muito afeto e respeito, de um modo geral. Experimentei poucas agressões ou assédios. Talvez pelo fato de ter começado a viver a transgeneridade (não transexualidade…) depois de ser conhecida como cartunista.

Há uma onda crescente de conservadorismo político no mundo. O radicalismo e a polarização existente hoje nas redes sociais mostram isso. Como reage a comentários de ordem política, dos quais discorda, e aos que se referem, de forma desrespeitosa, à sua opção de gênero?

Não é bem uma opção, só por falar nisso… Há uma escolha envolvida, claro, mas que se dá entre expor ou ocultar uma identidade de gênero. Já ocultei coisa demais na vida. Quanto ao conservadorismo, sim, dá para falar nisso em termos mundiais, embora ache que é enganoso encarar o fenômeno como tendo uma natureza só. Quero dizer que há diferenças entre a manifestação da direita na Polônia, vamos dizer, e a do Brasil. Procuro refletir sobre o que está acontecendo, claro. Ao mesmo tempo, reajo à truculência conforme o grau. Em alguns casos, basta bloquear o acesso de algum perfil na rede social. Em outros, pode ser necessário apelar para a Justiça. Quando percebo alguma disposição para uma discussão mais ou menos civilizada, prefiro ouvir e falar.

“Sei que não sou mulher. Ao mesmo tempo, gosto de ser a mulher que sou.”

Do ponto de vista machista, ser gay é ser mulherzinha. O que você pensa sobre isso?

O ponto de vista machista, ou patriarcal, como prefiro, é baseado num entendimento rasteiro e discriminatório da sexualidade e do gênero. Contém grande dose de medo. Acho (ou espero) que, no futuro, os homens consigam submeter essa cultura patriarcalista a um olhar crítico e transformador.

Embora, como já disse, se questione se é homem ou mulher, você já afirmou que gosta de ser mulher. Em que momentos esses questionamentos afloram, e quando você percebe que de fato prefere ser mulher?

O problema é haver uma só forma de entender gênero — essa forma binária que nos achata diariamente, obrigando a resposta a se enquadrar à estreiteza da pergunta. Eu digo que gosto de ser mulher, colhendo dessa afirmação todo o sabor que me interessa. Sei que não sou mulher. Ao mesmo tempo, gosto de ser a mulher que sou, o que me coloca no gozo de todas as conquistas de que já fui capaz na vida. E também no território de todas as minhas deficiências, claro. Quer dizer, a questão de ter uma resposta a qual gênero pertenço não é urgente, nem gera ansiedade…

Quanto à mudança definitiva de sexo, você já ressaltou que esta teria que ser uma solução muito boa para te convencer, mas que estaria disposta a implantar seios. Como andam essas questões?

Dizem que a gente não “muda de sexo”, que esta é uma ótica cisgênero. Eu pensaria numa cirurgia genital se tivesse algum tipo de desconforto com a minha genitália, coisa que nunca tive nem tenho hoje. Seios são outra cena, têm um simbolismo que eu levo muito em conta. Por outro lado, uma cirurgia é uma cirurgia e eu tenho 65 anos, não é como furar a orelha. Continuo considerando.

“Eles empolgaram o poder mas não sabem por quanto tempo. Precisamos lutar para defender os direitos que conseguimos até agora.”

A maioria das mulheres costuma reclamar da dificuldade de achar um homem interessante, que carregue atributos como gentileza, amabilidade e companheirismo.  Você concorda com esse ponto de vista?

Não penso em pessoas como resultado de uma busca prefigurada em modelos morais, tipo gentileza, companheirismo, bom humor etc. Vou lidando com as pessoas como elas são, entendendo-as e avaliando as relações possíveis enquanto as vivencio. Senão não há universo que seja pródigo, em homens, mulheres ou pessoas trans. Nunca vai aparecer o encaixe ideal para a comanda.

Está solteira?

Hoje, sim.

Você é uma conceituada cartunista, está entre os maiores artistas desse meio. Qual sua opinião sobre a reforma escolar proposta pelo governo de Michel Temer, que sugeriu banir das escolas artes — também filosofia, sociologia e educação física?

Obrigada pela avaliação que me faz! O governo do golpe está tentando submeter a sociedade ao máximo de diretrizes que puder da forma mais precipitada que conseguir— não tem estabilidade para um processo correto, porque não tem legitimidade. É composto de várias alas, de vários grupos oportunistas que tentam estabelecer hegemonia interna. O modo autoritário como veio essa proposta de reforma do ensino é irmão do modo autoritário como está sendo imposta a PEC 241 (atual 55), o projeto Escola Sem Partido, o projeto de entrega do pré-sal etc. Eles empolgaram o poder mas não sabem por quanto tempo. Por isso precisamos lutar para defender os direitos que conseguimos até agora.

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