Adriano Goldman

Adriano Goldman, diretor de fotografia | por Heloisa Eterna | foto Rafael Aguiar | Janeiro 2018

ADRIANO GOLDMAN: DIRETOR DE FOTOGRAFIA DE “THE CROWN”, BRASILEIRO CONTA PORQUÊ MAIS UM PRODUTO SOBRE A RAINHA FAZ TANTO SUCESSO

Adriano Goldman, a série inglesa “The Crown”, da qual você é um dos diretores de fotografia, recebeu boas críticas. Por que ela não será exibida em 2018?

Porque não dava tempo. Havia a possibilidade de chegar a seis temporadas, mas, a rigor, foram negociadas duas. Quando falaram para o Peter Morgan (roteirista e produtor) que era um sucesso total e que a série ia continuar, percebeu-se que do ponto de vista do cronograma não dava para entregar uma temporada em novembro de 2018. Vamos começar a filmar a terceira e a quarta de uma vez só em julho de 2018, estreando em agosto ou setembro de 2019. * A carreira internacional de Adriano Goldman ganhou exposição com o longa mexicano Sin Nombre (2008), prêmio de fotografia no Sundance Film Festival em 2009.

Talvez porque não se soubesse ainda que a série emplacaria, qual seria a recepção do público…

No fim da primeira temporada já se sabia, mas o Peter Morgan (roteirista dos filmes “Frost/Nixon”e “A Rainha”) não é uma pessoa fácil com quem negociar. Está muito empoderado, ganhou o primeiro Globo de Ouro para a Netflix (The Crown venceu em 2017 nas categorias melhor atriz e melhor série-dramática), os caras amam ele. E tem alguma coisa na série que é muito convincente. Quem diria que a rainha da Inglaterra despertaria hoje esse tipo de interesse? Óbvio que é um trabalho de equipe, mas quando recebi o texto dos dois primeiros episódios da temporada três, colocando os dois juntos, vi que é o melhor longa que li no último ano. É a qualidade do que o Peter Morgan entrega. Os diálogos, construção de personagem, pesquisa de época. A capacidade de mostrar uma família real humanizada. Eu amo o episódio quatro da temporada, quando a Magaret (interpretada por Vanessa Kirby) conhece o fotógrafo. Você torce por ela, um personagem que todo mundo sabe que foi uma mulher complicada, com pouco carisma, que bebia…

Há também um fator determinante para o sucesso da série, que é o ótimo elenco, encabeçado pela Claire Foy (a rainha da série, melhor atriz do Globo de Ouro de 2017), Matt Smith (príncipe Philip) e o veterano John Lithgow (Winston Churchill) …

Sem dúvida. Mas na volta da série todo o elenco será 100% outro. Uma nova atriz fazendo a rainha, a Olivia Colman. Um movimento muito difícil. A Nina Gold, diretora de elenco, tem que fazer um elenco integralmente novo. Nenhum rosto será repetido.

Por que não envelhecer os atores?

Não sei a razão. A ideia original eram seis temporadas com três rainhas diferentes, terminando com a Helen Mirren, porque já trabalhou com o Peter Morgan fazendo “A Rainha” no cinema e no teatro (“A Audiência”). Numa palestra, o Morgan disse que o número de histórias que ele poderia contar com uma rainha de 40 anos de idade, envelhecendo a Claire Foy um pouco, daria mais uma temporada. Mas acho que seria difícil renovar com aquele elenco 100%, porque é muito tempo de envolvimento, as pessoas querem fazer outras coisas. Eu nunca pensei que fosse trabalhar em duas, quanto mais em três temporadas da mesma série. Embora já tenha feito isso em “Cidade dos Homens” (série criada por Fernando Meirelles e Kátia Lund) e em “Filhos do Carnaval” (Cao Hambúrguer e Elena Soarez). Voltei para projetos dos quais havia participado, mas é que esse é muito bom de fazer porque a estrutura é incrível. Quanto mais comparo a estrutura de “The Crow” com outras séries que a Netflix ou a HBO filmam, concluo que de fato o projeto como um todo é muito grande, orçamento, logística.

Além dos orçamentos infinitamente maiores, qual a maior diferença entre trabalhar no Brasil e na Inglaterra ou Hollywood, por exemplo?

Cada temporada de “The Crown” deve ter custado entre 55 e 60 milhões de libras. É muito dinheiro. Cerca de 7 milhões de dólares por episódio. O que é fantástico. É uma fatia de mercado que hoje pertence às séries. Porque os longa-metragens entre 40 e 70 milhões de dólares não são mais produzidos. Ou você faz um filme de 15, 20 ou 100 milhões. Hoje qualquer produtor prefere gastar essa fatia de 70 em dez episódios do que num longa que adultos não assistirão. E os roteiristas adoram poder contar uma história em dez ou 26 horas, em comparação com duas horas com as quais estavam acostumados. É diferente. Tem mais dinheiro, estrutura e tempo. Uma série da Netflix no Brasil é filmada em oito dias; a “The Crown”, em 22. As equipes inglesas de set são maduras, muito profissionais, pessoas que já fizeram vários filmes grandes. Têm um método de trabalho que responde a esse orçamento, sem deslumbramento, com responsabilidade. Mesmo trabalhando com uma cara como o Peter Morgan, que reescreve e ajusta os episódios, é preciso ter precisão para gastar o dinheiro. Os dois primeiros episódios têm que ser mesmo mais caros, mas o restante do orçamento tem que ser balanceado.

“Sou uma pessoa que facilmente abre mão de uma primeira ideia, nunca acho que é a melhor.”

Que característica sua pode ter impressionado mais *Stephen Daldry para voltar a trabalhar com você? (*Um dos diretores e produtores-executivos de “The Crown”, também diretor de “Billy Elliot”, com quem Goldman trabalhou no filme “Trash”)

Teria que perguntar para ele (risos). Acho que o Daldry se surpreende com a capacidade de improvisação que eu tenho, gosto e aceito. É uma rigidez menor. É comum o fotógrafo ser uma figura resistente a ideias de último momento. O Daldry é uma pessoa de teatro, ele precisa de improviso. Óbvio que ele improvisa até o momento em que uma ordem é estabelecida, então, todo mundo entende o que vai ser filmado. Mas ele precisa desse primeiro momento onde não há a cara feia do fotógrafo. Sou uma pessoa que facilmente abre mão de uma primeira ideia, nunca acho que é a melhor. A gente briga muito, mas as brigas duram segundos. Logo depois já estamos de bem de novo. Isso eu ouvi dele, que é uma característica que o impressiona. É capacidade de me recuperar de uma frustração criativa. O que acontece é que eu me submeto, porque ele é um artista como nunca conheci. É mais que um cineasta, que um diretor de cinema. O Daldry pensa no conflito do personagem, na coreografia, na emoção, na música, no ritmo. Fico sempre admirado quando estou trabalhando com ele. Não é exagero. Os atores têm pelo Daldry veneração pela gentileza, pela criatividade, pelo amor com que ele os trata.

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Adriano Goldman, fotografado por Rafael Aguiar no Belmond Copacabana Palace, Rio de Janeiro

E como foi sua relação com os atores de “The Crown”?

Faço o que faço por causa dos atores. Digo isso com um certo exagero, mas nem tanto. Acho que é o trabalho mais difícil, se exporem daquela maneira… Então, protejo muito o elenco, me envolvo, fico amigo. E o Daldry tem um olhar específico para isso. Quem trata bem o elenco dele, ganha pontos. Eu, Claire e Matt ficamos ótimos amigos. E era uma equipe muito gentil, não tivemos desentendimentos.

De que maneira impacta no seu jeito de trabalhar o fato de se relacionar com diretores de diferentes estilos?

Precisaria falar do estilo de cada diretor com quem trabalhei, e não é fácil. Diria que a maioria tem um estilo escondido, que está sempre se desenvolvendo. O Daldry tem estilo diferente com relação à encenação dos outros. Por ser um diretor de teatro, ele assiste a coreografia de um específico ponto de vista. A partir dali, a cobertura cinematográfica, quantos planos são necessários para contar aquela cena, é discutida com o fotógrafo e o operador de câmera. Os diretores têm estilos que mudam de acordo com a história. O estilo tem que mudar se você está fazendo ficção científica ou um filme de época. Todos eles mudam e eu também. Não acho que o diretor de fotografia de cinema deva ter um estilo. Talvez, um método. Faço questão de ter pessoas no set que são meus amigos, que têm um entendimento mais fácil. E acho que o filme, do ponto de vista filosófico, é do diretor. Estou lá para servir ao diretor e à história. Faz parte do meu método escutar primeiro. Já fui diretor, hoje em dia não penso nisso, acho muito angustiante o que eles fazem: transformar uma obra escrita numa visual. Na série é um privilégio trabalhar com três, quatro diretores. O Ben Caron é um diretor muito mais jovem, que faz cada episódio com obsessão, porque ele entende que “The Crown” é um enorme passo na carreira dele. Tem outros diretores, como o Philip Martin, que querem fazer storyboard, desenhar sequências inteiras, e isso não é usual no processo de outros diretores. Vou me adaptando.

“Sou muito detalhista […] para começar a filmar. Quer dizer, muito planejamento para poder improvisar.”

E o que é necessário para você lidar com um diretor com quem nunca trabalhou?

A pré-produção é fundamental para lidar com o diretor estética e psicologicamente num set de filmagem. Entender se ele precisa apenas de um apoio criativo ou logístico. Sou um fotógrafo muito “hands on”. Como não opero câmera no “The Crown”, eu mexo em tudo. O departamento de arte já me concedeu essa licença, digamos assim. Como o meu trabalho é muito baseado em fontes de luz reais — luminárias, janelas, etc —, para mim uma cortina é um instrumento de trabalho. O quanto que a cortina está aberta ou fechada importa muito no clima que quero entregar. Cada luminária, cada lâmpada que vai em cada luminária é escolhida por mim ou pelo meu departamento de objetos ou de elétrica. Sou muito detalhista na maneira como reúno as condições para começar a filmar. Quer dizer, muito planejamento para poder improvisar.

Você chegou a fazer direção de cena/atores em “The Crown”? 

Semelhante com o que aconteceu em “Cidade dos Homens”, por eu ter fotografado 80% dos episódios, chegou o momento em que dirigir um episódio ficou mais simples. Na série brasileira, era amigo da roteirista, a Elena Soarez, e o elenco todo disse: “Dirige um episódio que a gente te ajuda”. Então, isso passa a ser mais natural. Muito diferente de ser cabeça do projeto, onde você levanta o financiamento e tem ainda toda aquela parte de pré-produção que não é criativa, é estrutural. No caso do “The Crown”, dirigi duas cenas por questões circunstanciais: o Ben Caron teve uma apendicite. Nem gostei muito, porque dirigir substituindo alguém não é a melhor experiência. E adoro o que faço. Dirigir e fotografar ao mesmo tempo é uma tarefa pesada demais.

Por ser uma série de época, você trabalhou com referências ou preferiu não ter ideias pré-concebidas?

Claro que pesquisamos os livros sobre a vida da família real inglesa e os de fotojornalismo da época. Do ponto de vista de obras de ficção, não usei referências. A Inglaterra estava vindo de “Downton Abbey”, uma série de enorme sucesso. Trabalho com anti-referência. Não quero que seja como “Downton Abbey” ou outro série/filme. Usamos como referência o fotojornalismo do período — que era mais romantizado do que hoje, menos cru, mais soft — por causa das lentes ou por causa de um glamour específico. Em Londres, após a Segunda Guerra, o Palácio de Buckingham era completamente preto pela fuligem. A ausência de cores vibrantes, uma certa decadência da cidade no final da década de 1940, foi o que a gente procurou. A não-glamurização do universo da família real. Isso é muito sutil. Nos cenários da primeira temporada, os móveis não são novos, os quartos da rainha e do príncipe têm rachaduras e mofo. Trata-se de um conjunto de coisas que a gente não quer fazer. Do ponto de vista da gramática cinematográfica, nós não faremos closes da rainha com lentes inferiores a 40, 50, 75 e 100 milímetros. Nem faremos close-ups com a 32 e a 25 porque tem uma distorção que não gosto. Fomos estabelecendo pequenas regras. Como eu não era o único diretor, mas iniciei a primeira temporada, o que era útil do ponto de vista de consistência visual passei para o Ole Birkeland, outro diretor de fotografia. Mas nada é absolutamente rígido. Não há uma bíblia.

Você tem usado a estratégia de fazer com que os atores se movimentem em cena para, por fim, chegar ao close-up intenso e mais emocional. Teve que trabalhar muito próximo fisicamente deles…

Minha primeira tarefa com um diretor como o Daldry é oferecer o espaço cênico, de modo que ele possa trabalhar a coreografia com os atores. Se a minha luz deve vir de fora para dentro, devo ser capaz de dar a ele um set limpo, sem tripés, coisas desse tipo. E ainda ter espaço para poder dizer: “E se a gente levar isso um pouco mais para perto da janela, porque quando eu voltar para o close, sei que eles estarão numa situação de luz favorável?”. Hoje em dia o Daldry é flexível e se ajusta pensando nos planos médios e fechados. Não adianta você ter uma posição reativa a uma mis-em-scène complicada, porque o Daldry acha que está sendo tolhido. Eventualmente, é trazida alguma coisa para o set para valorizar o close. Tenho obsessão por ‘entregar’ o brilho no olho do ator — ou não, dependendo da carga dramática. No “Jane Eyre”, de 2011, cenas foram iluminadas só com velas. Realismo como ponto de partida. De onde viria a luz? O que eu poderia oferecer que parecesse real mas que também fosse cinema? Em “O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias”, de 2005, já era assim. Tinha um set muito livre. Do ponto de vista logístico é muito complicado para a produção. Para a luz vir de fora para dentro estou sempre bloqueando uma rua, causando um problema. Mas você chega no set e ele está pronto para um plano aberto e os atores felizes por terem a possibilidade de treinar num espaço que não é restrito.

“The Crown” tem um diálogo fino, bem conceituado junto à direção de arte, figurino… Você já disse que, junto com a equipe de designers, evitou o look cinderela. Como é esse processo de refinamento estético?

Num processo como “The Crown”, o diretor de arte começa muito antes do fotógrafo. Quando eu chego, já está havendo um debate estético entre o diretor, o diretor de arte e a figurinista. Existe um trabalho de pesquisa já feito. Na medida em que o fotógrafo começa, essa pesquisa é alterada porque a discussão sobre cor fica mais aprofundada. Na primeira temporada, tivemos a Michele Clapton, uma figurinista excepcional. Debatemos muito o uso de cores dessaturadas. Não só no figurino, mas também no cenário e na maquiagem. O que aconteceria se eu insistisse em dessaturar um pouco mais na pós-produção, na correção de cor? Qual seria o resultado disso na maquiagem? Ela deveria ser um pouco mais saturada do que o normal? Os primeiros testes de câmera são feitos. Depois, com a atriz vestida como o personagem e iluminada propriamente, a imagem já estará quase 100% elaborada. Mas dificilmente me envolvo no debate estético que são teóricos, como faz o fotógrafo italiano Vittorio Storaro (“Apocalypse Now” e “O último imperador”). Ele acha que cada personagem, cada emoção merece uma cor diferente. No caso do “The Crown”, o desenho de luz é feito para respeitar uma época. O debate estético é feito ao longo do processo. Não sei se precisa ser um debate culto. Muitas vezes ele é instintivo.

“É muito estimulante ver uma performance como a dela, porque você quer ser tão bom quanto ela no que você faz.”

(Sobre Claire Foy, a rainha da série)

Segundo crítica do jornal The New York Times, a série é “uma novela apresentada com inteligência, gosto e valores de produção elevados, que dá prazer assistir. A virtude é ter cada detalhe, cada ideia representada”. Acha que esse é o trabalho em que você teve que ser mais meticuloso?

Sem dúvida. Mesmo no final da segunda temporada, quando você acha que o jogo está ganho, o rigor com os detalhes foi o mesmo. Sou testemunha do trabalho da equipe de figurino, da direção de arte. Não houve em nenhum momento a ideia de relaxamento. Percebo isso mesmo em pessoas que têm tarefas mais técnicas, como o meu operador de câmera. São perfeccionistas obsessivos. É uma característica das equipes inglesas, o rigor e a busca da perfeição. “The Crown” não é uma série que coloca o público em xeque, que questiona a inteligência dele sendo provocadora e com um mistério que precise ser desvendado. Ou tem um personagem que você deteste e que no final tem um arco de redenção. Se você não oferecer  sofisticação no diálogo, na mis-en-scène, na direção de arte e na fotografia, a série passa a ser algo que você já viu. Seria mais uma obra sobre a vida da rainha da Inglaterra. E não tenho dúvidas de que sem a qualidade dos diálogos do Peter Morgan e a performance da Claire Foy a gente nem estaria aqui conversando. É muito estimulante ver uma performance como a dela, porque você quer ser tão bom quanto ela no que você faz.

E como foi o relacionamento com Claire Foy?  (A atriz está filmando “The Girl in The Spider’s Web”, no qual vive a personagem que foi de Rooney Mara em “Millennium, Os Homens Que Não Amavam as Mulheres”)

O mais impressionante para mim ao ter feito “Álbum de família”, com a Meryl Streep, foi descobrir que a atriz número um do mundo — se há uma unanimidade, é ela — é também a mais gentil, a mais profissional, a mais preparada do que todas as pessoas do set. Ela nunca “veste” a celebridade, é sempre artista. Pronta para fazer o ofício dela. Quando entra no set, a Meryl não é a mega-star, que precisa de secretária. Ela é uma atriz. Isso muda o ambiente todo. Todos os outros atores passam a ter que ser tão dedicados quanto ela. Senão, você está no prejuízo. A Claire, apesar de ser muito mais jovem e diferente, respeita o mesmo método. Em duas temporadas não a vi esquecer uma fala. É extremamente preparada, generosa, querida e afável. No set, o que tem que prevalecer é seu ofício, seu talento. O Tiger Woods (jogador de golfe) diz que quanto mais ele treina, mais sorte ele tem. Não é sorte nem só talento. Se você não estiver lá pronto, concentrado, disponível, não acontece. E a Claire é essa pessoa. Fora que é linda de morrer. A amizade dela com o Matt Smith é incrível, pareciam irmãos, de provocar, dar risadas. Sem falar no John Lithgow (Winston Churchill na série, ganhou em 2017 o Emmy pela performance), que sendo um “lorde americano”, the nicest guy, fez um papel difícil de um lorde inglês. Ele cumprimentava e sabia o nome de todos no set. E, apesar de ser um ator mais velho, consagrado, soube reconhecer o talento de uma jovem atriz.

Do ponto de vista de diretor de fotografia, qual foi a cena mais complexa de “The Crown” até agora?

A cena do funeral nazista, no episódio nove da segunda temporada, que é o flashback do príncipe Philip, um episódio muito grande, a infância dele e a relação com a irmã, o desastre aéreo, os sonhos. Um episódio bem complexo, tivemos um dia só pra filmar. E também a coroação, no episódio cinco da primeira temporada, foi um conjunto de esforços. Tem efeitos especiais, chroma key,  aquele pingue-pongue do que está acontecendo em Londres, na coroação, e em Paris, onde o tio da rainha está com os amigos. Foi o primeiro que nós filmamos. Começando a série com um diretor com quem nunca tinha trabalhado, o Philip Martin. Estava pisando em ovos. Isso, sim, dá frio na barriga!

Não lhe parece surreal que ainda hoje existam monarquias como a do Reino Unido?

Acho completamente absurdo. Um conto de fadas que hoje não faz nenhum sentido. Você é uma autoridade com Direito Divino (direito natural atribuído aos reis, com papel decisivo no curso da História). Não consigo entender. Mas não fui criado nessa cultura… Hoje, mesmo os trabalhistas são monarquistas. Se não são, não podem se declarar, porque é tão estabelecido, tão aceito, principalmente pelo papel que esta rainha teve nos últimos 60 e tantos anos de reinado. Ela deu poucos vexames. E existe, sim, um apreço da população por essa figura, essa instituição que, num mundo tão efêmero, de fato representa uma referência sólida. Como a rainha tem sido uma figura neutra, que não atrapalha, as pessoas aceitam isso com uma naturalidade que me surpreende. Até meus amigos ingleses progressistas entendem que é embaraçoso no mundo de hoje, mas ninguém é abertamente anti-monarquista. Acho curioso a fortuna que eles custam e gerenciam no século 21. Consigo entender o papel que o pai dela e o Churchill tiveram durante a Segunda Guerra para ultrapassar a crise. Mas hoje é meio esquisito. Tenho esperança de que o príncipe William, futuro rei, um dia diga: “Continuarei rei, mas posso dirigir meu próprio carro e meu filho vai ter uma educação mais humanizada”.

“Não me desagrada a ideia de que cinematografia, no fundo, é pintar com luz.”

O que te leva a escolher ou aceitar um novo projeto?

Fundamentalmente, a história, a qualidade do roteiro. Mas, ao mesmo tempo, isso não é desconectado de quem é o diretor, quem me ofereceu o roteiro para ler ou onde é… Porque tem essa história de viajar, viajar, viajar, o que aconteceu quase ininterruptamente na minha vida. Hoje já penso melhor. Estou favorecendo Londres, porque vou morar lá. A seleção passa também pelo orçamento. A terceira temporada de “The Crown” não foi escolhida por essa razão, mas porque estou adorando fazer. Faço parte do coração criativo da série. É muito raro na vida de um fotógrafo ter tamanha influência. Fui fazer um scouting agora na Espanha, que é um scouting que o fotógrafo nunca vai porque está muito no início de tudo. Vão diretor de arte, produtor de locação e o produtor. Normalmente vou quando já foi feita uma seleção. Isso é, de fato, poder criativo. Fiz uma indicação de um diretor para a terceira temporada, e ela é considerada importante. Me agrada muito ter esse poder.

Qual a relação entre pintura e a fotografia no seu trabalho?

Não sou uma pessoa culta, do ponto de vista de ter para mim referências permanentes, constantes. Diria que Vermeer (o holandês Johannes Vermeer) e Velázquez (o espanhol Diego Rodríguez de Silva y Velázquez) são dois pintores que acho incríveis, onde observo que a qualidade em seus quadros é semelhante ao que gostaria de atingir nos meus trabalhos. Não que eu imite ou use como uma referência direta. Mas não me desagrada a ideia de que cinematografia, no fundo, é pintar com luz. Você estabelece um quadro, e aí cada posição, cada janela tem uma importância no desenho daquela luz. Meus instrumentos para trabalhar, que são os refletores e as lentes, podem ser comparados a pincéis? Podem. Mas são coisas muito diferentes, porque a fotografia que faço é em movimento, então ela evolui; um plano começa de um jeito e termina de outro. Seja pelo movimento, pelo que o ator entregou, pelo que a luz mudou ou porque terminou em fade.

“Na medida em que todo mundo pode ser fotógrafo, só os bons se destacarão.”

Como você vê a diferença entre fotografia digital e analógica?

A fotografia era 100% analógica. Produzida numa câmera analógica, filmada em película, revelada e montada numa moviola. Depois passou a ser híbrida, filmada em película, digitalizada, montada e finalizada digitalmente. Agora o processo é 100% digital, incluindo a projeção. Comecei com câmeras U-matic, analógicas, de televisão. Não eram de película. Sempre misturei vídeo com cinema. O Roger Deakins (“Blade Runner 2049”, “O Leitor”, “Fargo”), fotógrafo número um hoje, diz claramente: “Não filmarei mais com película, porque gosto do que vejo e porque durmo”. A vida do fotógrafo, no universo da película, sempre teve uma angústia muito grande: “Será que a exposição foi correta, o material vai estar em foco?”. O fotógrafo e o foquista iam para casa e não dormiam, pois precisavam esperar o laudo do laboratório para saber se tinha um risco, uma sujeira. Quando o Deakins diz isso, essas coisas têm que ser consideradas. Já o Janusz Kaminski, fotógrafo do Spielberg (“A.I: Inteligência artificial” e “Indiana Jones”) detesta câmeras digitais. Ele filmou “Ready Player One”, onde misturou película com digital, e sofreu quando teve que olhar no monitor digital. Sei disso porque trocamos alguns e-mails. Não tenho esse sofrimento.

“Paris, Texas e  Blade Runner são filmes que fizeram com que me decidisse a ser filmmaker.”

A reemergência da película é fetiche?

Não meu. Não sou um saudosista. Fiz milhões de coisas em película, gosto do tanto que aquilo é orgânico, o tanto que vibra, mas eu já vinha digitalizando a película há muito tempo. Você capta em película, digitaliza e a partir dali o processo de construção é inteiro digital. Gosto da imagem que as câmeras digitais profissionais me oferecem, como a ARRI Alexa e a Sony F55, que uso em “The Crown”, adicionando a elas lentes e filtros que possam fazer com que as imagens fiquem mais cinematográficas. É curioso que até hoje o parâmetro de comparação é a película 35 milímetros; é tudo que as câmeras digitais pretendem atingir. Por que você descontinuaria um formato que ainda é o melhor? Ao mesmo tempo acho que o que está acontecendo é o que eu gostaria: como na pintura, você pode pintar óleo sobre tela, aquarela, fazer colagens. O fato de eu ter hoje a possibilidade de filmar numa 5D ou 7D ou numa Alexa XT ou 65; ou em película, isso é o mais bacana. A película 35 milímetros não morreu. Tive conversas recentemente com diretores que insistem em dizer: “Nós faremos o filme em película”. São diretores que ajudam a dar suporte para que a Kodak continue existindo. Eles têm uma metragem anual combinada para ser comprada da Kodak. Daqui a pouco vai ter produtor forçando o diretor de fotografia a fazer o projeto em película por causa desse acordo. Na América do Sul é mais difícil porque os laboratórios morreram. Mas em Londres e Los Angeles tem muita gente filmando em película. O que descontinuou a película não foi a película nem o fato de que surgiu algo melhor. Foi o fato de os laboratórios não conseguirem sobreviver só revelando, eles precisam copiar.

A função do fotógrafo é menor na era digital? Houve uma desmistificação da fotografia?

No meu meio, não. O fotógrafo ainda é muito valorizado. Existiu a noção generalizada que foi: se qualquer um pode ter uma câmera, qualquer um pode ser um fotógrafo. Mas já estamos num momento posterior, onde se percebe que não. Aquela visão ingênua de que isso ia revolucionar o mercado profissional não aconteceu. Na medida em que todo mundo pode ser fotógrafo, só os bons se destacarão. É tão difícil fotografar com câmeras profissionais digitais quanto era com película. Mais complicado porque lida com fatores técnicos. Trabalho exatamente como eu trabalhava com película, com a diferença de que o feedback é instantâneo. O que aconteceu é que o set de filmagem ficou mais democrático. Agora todo mundo acha que pode ter uma opinião, porque se o que estou vendo é o que vai imprimir, qual é a mágica? A mágica é que a pós-produção ainda continua; a correção de cor e os efeitos especiais vão ser somados ao trabalho final da montagem. Não desmistificou o trabalho do fotógrafo. Claro que quando tem película a mística é maior, porque todo mundo sabe que é caro o valor de cada fotograma impresso, o ritual é mais solene. No meu set a gente está tentando recuperar isso. Não é porque não é película que você vai produzir uma quantidade enorme de arquivo. As pessoas já entendem que isso compromete o workflow da pós-produção.

Existe, como dizia Glauber, uma “fotografia dos trópicos” imune à tabela Kodak?

Talvez na época em que ele disse isso houvesse uma resistência, uma autonomia cultural tipo: “Eles não leem nossa realidade nem tecnicamente como deve ser lida”. Mas acho que não. Desde “Central do Brasil” (direção de Walter Salles) e “Cidade de Deus” (Fernando Meirelles e Katia Lund) que é uma fotografia dos trópicos e ao mesmo tempo internacional. É difícil fotografar na luz dura do Rio de Janeiro, talvez mais para um fotógrafo estrangeiro, que nunca filmou o que eu filmei aqui na praia, no Tocantins, na floresta Amazônica. O cara chega e estranha, a luz é muito vertical. O sol corre no céu de uma maneira diferente que corre na Inglaterra, em Los Angeles.

“Voltando a fazer longa-metragem, o Oscar é um sonho. Mas é muito, muito difícil. Deixo isso, assim, pairando.”

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Você poderia citar tês filmes estrangeiros e brasileiros, além de três séries?

Sempre vou citar “Paris, Texas” (direção de Wim Wenders) e “Blade Runner” (Ridley Scott), porque são filmes que fizeram com que me decidisse a ser filmmaker. E o “Birdman” (Alejandro G. Iñárritu), direção de fotografia de um mexicano que admiro muito (Emmanuel Lubezki), que fez aquela inovação no plano sequência que não termina nunca. Dos filmes brasileiros, “Cidade de Deus”, “O Auto da Compadecida” (Guel Arraes) e “Tropa de Elite 2” (José Padilha). Não sou um consumidor ávido de séries, mas “House of Cards” me impressionou. O que o diretor David Fincher apresenta desde que ele começou a trabalhar com câmeras digitais é sempre sofisticado. Gostei também de “Game of Thrones”. E “Breaking Bad”, que me prendeu, apesar de a fotografia não ser super-relevante.

Ganhar o Oscar permeia os seus sonhos?

Não vou mentir. Claro que sim. Gostaria muito de ganhar um dia. Mas cada vez mais estou aprendendo que é a indicação que importa. Por exemplo, o episódio cinco da primeira temporada de “The Crown” foi indicado ao ASC (American Society of Cinematographers), do qual sou membro; ao Camereimage, festival da Polônia e mais importante da cinematografia; ao Bafta; ao Emmy e ao BSC Awards. São os cinco festivais, do ponto de vista do fotógrafo, mais importantes no universo da televisão – e ele foi indicado a todos esses prêmios. Por acaso não ganhou. Mas nenhum dos meus concorrentes foi nomeado para os cinco. Ganhar é circunstancial, muito de momento. Voltando a fazer longa-metragem, o Oscar é um sonho. Mas é muito, muito difícil. Deixo isso, assim, pairando (risos).

❤️Agradecimento de aCriatura ao Hotel Belmond Copacabana Palace

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