Aleta Valente

Aleta Valente, artista visual | Março 2019

ALETA VALENTE: CRIADORA E CRIATURA SE MISTURAM PARA FAZER NAS REDES ARTE COMO PROTESTO SEM PERDER O HUMOR

por Heloisa Eterna | foto Rafael Aguiar

Aleta, você usa a internet, principalmente o Instagram (@ex_miss_febem2), como plataforma para a sua arte. Vamos te fotografar, mas também filmar. Se sente confortável?

Todo dispositivo altera a experiência. Então, a gente fica editando mentalmente. Diante de uma câmera, você não fala como numa mesa de bar. O buraco é mais embaixo. Como a coisa hoje, não é permitido o equívoco. Não há espaço para pensamento dissidente dentro da própria esquerda, o que tem sido de difícil de lidar. Com a direita é sabido que a relação é problemática. Mas, atualmente, tenho me assustado com a relação com a esquerda.

Como assim?

No campo da arte, tem uma vaidade moral, essa coisa de apontar o erro, encontrar culpado. Está rolando uma epidemia de queima de reputação, com a homogeneização do pensamento criada pelas redes sociais. Como a gente vê da direita, vemos também em gente da esquerda. O movimento de manada, pessoas replicando informações sem checar a fonte. Essa questão da realidade. Ninguém sabe mais nada.

De que forma isso afeta a você ou a sua arte?

Aí a gente vai começar pela bomba (risos).  Senti isso dentro do circuito [das artes]. Porque usei as mídias sociais, fui uma heavy user. Pela intensidade e velocidade, catalisei uns processos que hoje estão mais recorrentes, consigo olhar e entender a máquina por trás do que está acontecendo.  Sofri acusações online, boicote. Como não tinha precedente de acontecimentos similares, não sabia me defender. Levei mais tempo pra compreender. No final, acho que é fruto do quê? De uma economia que está descendo a ladeira. Tem uma galera brigando por holofote. Hoje isso é mais assustador. Estão usando bandeiras minoritárias por questões de ego pra passar por cima. Quando isso vem de tão de perto, você pensa: o que acontecendo?

“Com a homogeneização do pensamento pelas redes sociais, ficou tudo dogmático.”

E qual a razão?

Não sei se o rótulo de feminista te torna um alvo pra merda.

Mas do que te acusam?

O feminismo tem 300 facções, ? Sou um indivíduo, preservo minha individualidade, e me dou o direto de discordar de um grupo, ou de temas. Com a homogeneização do pensamento pelas redes sociais, ficou tudo dogmático. Você tem que repetir ipsis litteris uma coisa, porque senão… Fui acusada de racismo, transfobia e até mesmo de nazista.

Como vê o lado nefasto das redes sociais?

Para mim, foi uma experiência de muita violência. Midiaticamente, a gente vê isso acontecendo agora. Pegam sua imagem e distorcem. Veja as acusações de pedofilia contra [o ex-deputado] Jean Wyllys. Marca a pessoa. A coisa se espraia de uma forma, que gera uma série de outras coisas, não dá pra prever muito. Dentro do campo da arte, começaram a deflagrar acusações, a compartilhar difamações. What the fuck? É dessa galera que eu quero fazer parte? Esses são os pensadores de vanguarda? É nesse bonde que eu quero ? Tive uma crise. Lógico que tenho muito suporte, muita gente boa do meu lado. Mas o que é ruim tem peso distinto. Me baqueou. Hoje em dia, entendo o que aconteceu. Mas é estranho. De repente eu, que ocupei tudo que é subemprego nessa cidade, quando começo a fazer o meu, viro oportunista do dia pra noite? A demônia. Porque sou mulher?

“Hoje em dia estou mais interessada em pesquisa, no reblog. […] E ter senso de humor.”

Teve a ver com o tipo de arte que você faz?

Eu poderia expor foto ou instalação, fazer uma performance. Mas o que eu fiz na internet foi uma coisa muito intensa. Estava pensando sobre a minha imagem, mas também nas imagens do mundo. Minha primeira fase foi… Quando falo a primeira fase, é minha primeira conta de Instagram (risos). Autorretrato, selfies. Fotos que tirava espontaneamente, e outras em situação staged, criava cenário pra fotografar. Ou encontrava esses cenários por aí, me colocava no meio e fotografava. Hoje em dia estou mais interessada em pesquisa, no reblog. Encontrar coisas no mundo, como as pessoas se representam. E ter senso de humor, que é uma via possível nisso tudo. No meio desse caos, ter humor crítico, onde você se vê, e onde  as pessoas também conseguem rir de si mesmas. 

[Em janeiro de 2017 , o perfil da artista no Instagram foi retirado do ar por excesso de denúncias. O projeto foi censurado por parte do público que o denunciou e pela política de “violação dos padrões da rede” do Facebook/Instagram]

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O trabalho acima foi censurado pelo Instagram

Tirar o foco da sua persona foi intencional?

Foi. Estava completamente vulnerável. E o que acontece nas redes é um panoptismo em esteroides. A gente o tempo todo oferecendo informação sobre onde a gente , com quem a gente . Não sei se foi autocensura. É preservar. As pessoas ‘pegam’ no meu trabalho a questão da minha autoimagem, mas eu pensando em internet também. Mídia social é o novo crack. Isso está conectado a mil coisas, à depressão. Minha depressão, inclusive. Nesses anos todos que mais usei a internet, tinha a ver com isso. Morava longe, não tinha dinheiro. Essa plataforma se tornou o meio mais barato de espalhar minha palavra (risos). O meio mais possível. Mas, ao mesmo tempo, passando 16 horas do dia com o celular, sem ver gente… Trinta mil followers, e passo a semana inteira trancada em casa com o celular na mão (risos). Adoro gente, mas também tem isso de dura. Às vezes fico um tempão sem pegar um ônibus. Não sei se deprê, e daí me tranco e fico na internet, ou se fico deprê por estar na internet.

“Acho que a vida vai deprimindo a gente.”

Naturalmente, você já é uma pessoa deprimida?

Acho que a vida vai deprimindo a gente (risos).

Como você procura sair desse lugar?

Já fiz terapia, mas hoje não cabe no meu orçamento. Vou fundo na depressão. Dois anos atrás, o lado da cama onde dormia ficou como uma cova, de tanto tempo que passei deitada. Leio muito sobre como sair da depressão sem medicação. Tem gente que consegue criar uma rotina, e superar. Gosto muito de exercícios físicos. Tenho essa pulsão de morte, mas hoje em dia me observo. Quando parando de tomar banho, de escovar os dentes, coisas básicas… Aí acordo, vou caminhar, tomar sol.

Isso tem a ver com o quê?

Acho que tem a ver com todo um contexto econômico e social. O que é ser uma mulher nessa porra desse país, que nem uma porra de um aborto a gente pode fazer? Sobre isso, financeiramente é também uma merda. A gente fala do corpo, do direito… Malandro, desembolsar dinheiro pra fazer aborto, quando você vive dura… Vejo minhas amigas no corre de… tiro dinheiro do cu agora? Muita gente recorre ao Cytotec, que as ONGs gringas mandam. Cada vez mais vejo meninas utilizando esse recurso. Pela Organização Mundial da Saúde, é seguro fazer com até 12 semanas de gravidez. Lá fora, os abortos legais são assim. Você tem a opção de fazer aspiração, ou tomar comprimidos receitados por médicos. Tudo isso com acompanhamento. Usando esta medicação, não  há como saber se foi aborto induzido. No entanto, lá fora você pode ir para um hospital, e fazer uma curetagem após o aborto caso seja necessário. Aqui existe um pensamento dentro do sistema de saúde, que automaticamente criminaliza a mulher, mesmo quando o aborto é espontâneo. As mulheres são tratadas de forma hostil, por isso o medo de recorrer a um hospital, e passar por uma situação pior do que a que já estão, que é a de humilhação.

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Você fez um aborto.

Alguns. Tive minha filha cedo, com 18 anos. Senti um peso até mesmo de comunicar que era mãe solteira nesta idade. Ao mesmo tempo, eu tinha um pouquinho de ambição, queria crescer, estudar. Mas era como ter uma tarja na minha testa: “Pobre, fodida”. Porque era isso, ? Você se fodeu muito cedo. Lógico que dá pra continuar a vida, mas a gente está num Estado que não vê a mãe solteira como um cidadão. Criar uma criança é muito caro. Cuidar da saúde, dar educação. Me vi engordando estatísticas, culpada pela taxa de natalidade de um país inteiro porque estava grávida, adolescente. Quase o retrato da merda toda. E tem o preconceito, o mesmo da galera que vai apontar que o aborto é errado. Isso funciona pro Estado, porque é o pilar do capital. Manter a mulher como uma mão de obra barata, precarizada, ou dentro de casa com um trabalho não-remunerado. Essa indústria milionária do cuidado, que são as donas de casa. Isso vai muito além. É um pilar do capitalismo. Você cria novos consumidores, e mão de obra barata pra continuar consumindo, levantando parede nisso tudo.

“É maravilhoso ter minha filha. Isso não contradiz […] achar que, naquela idade, a melhor opção pra mim teria sido o aborto.”

E sua filha?

É maravilhoso ter minha filha, estou superfeliz. Isso não contradiz o fato de eu achar que, naquela idade, a melhor opção pra mim teria sido o aborto. Falar isso não altera o passado nem o fato de eu ter uma filha. E o fato de que eu gostaria que ela tivesse acesso quando precisasse, se precisasse. É uma questão de ter direito à escolha.

Você já recebeu críticas por se apropriar de imagens alheias, já que sua arte utiliza conteúdo da rede. 

Tenho isso bem resolvido comigo mesma.  Minha primeira pesquisa tinha foco na minha autoimagem, selfies. Fazia muitas fotos em casa, no quintal, imersa em tédio. Desempregada, uma vida sem muita perspectiva. Estudei artes, mas nunca me formei. Trabalhei como assistente de artista, em museus. Mas não dava pra sobreviver, sendo mãe de uma criança e ao mesmo tempo ter uma vida, lazer. Teve uma hora que parei de agir racionalmente. Tentava conciliar trabalho, criança, mas nada deu muito certo. Aí eu quebrei. Foi falência não só de ordem financeira. Foi uma falência do que eu acreditava. Que ia estudar e ascender socialmente por essa via. Comecei a jogar outro jogo, a coisa de usar a plataforma online. Na arte, você submete seu trabalho ao crivo de um outro. É convidado pra uma exposição, o curador se interessa pelo seu trabalho, o crítico vai escrever, você tem open call, manda o portfólio. Eu dei um balão, fiz um processo de autolegitimação. Era sobre autoimagem. Mas foi isso também: criei meu público, que não é apenas o especializado. Foi uma experiência louca, esse pulo do gato. Eu distribuo meu trabalho, faço a mediação.

“Fiquei com muito medo de cair da borda do mundo.”

Por que não se enquadrou no formato da faculdade de Artes?

É uma faculdade integral. Eu trabalhava em um período, e assim ia levar 20 anos pra me formar (risos). Tentei funcionar, era boa até terminar o Segundo Grau. Fiz vestibular grávida. Escolhi Artes porque era o curso de Humanas mais fácil de entrar (risos). Foi o que me guiou. E estava morrendo de medo do isolamento da maternidade. Fiquei com muito medo de cair da borda do mundo. Entrei na faculdade, minha filha tinha meses. Havia algum suporte familiar, mas família é aquilo, ajuda mas você tem que viver dentro dos parâmetros de quem está te suprindo. Tinha uma filha, mas queria ter uma vida social, ter direito à minha vida sexual.  Precisava trabalhar para ter direito à minha liberdade. Não faltava comida nem luz, mas ao mesmo tempo não tinha nenhuma autonomia, inclusive em relação à minha própria filha. Fiquei tentando caber nesse formato, estudando e trabalhando. No final, entendia que me tornava medíocre em tudo que fazia.

Você já disse que era uma ambiente muito burguês.

Quando falo que o curso era pra burguês, é a questão de… Acho engraçado estudar história da arte, porque é bonito. Ao mesmo tempo, quem vai absorver isso no Brasil, esses semestres de formandos? Lógico que encontrei bons professores, tive bons encontros, me norteou de alguma forma, para o que gosto e não gosto. Tinha muita vontade de dar aula. Mas fui pegando o ranço do ambiente acadêmico. Cada vez me afasto mais. Às vezes fico pensando que nem devia falar do meu trabalho. Devia botar no mundo e… Porque é difícil, ? Quando você fala sobre a coisa, você fecha um pouco ela.

O meio da arte parece ser, para quem ainda não alcançou fama e dinheiro, quase inacessível…

Se você tem uma rede de segurança, um suporte, dinheiro de família, whatever, você se segura de outra forma. Quando não, é mais complicado. Minha filha precisa de aparelho nos dentes, que qualidade de vida estou dando pra ela, o que eu posso oferecer? Minha saúde física e mental, tudo isso, ? Vários momentos da minha vida pensei por que não estudei odontologia, enfermagem, qualquer coisa? Porque a arte tem essa coisa do eterno “vir a ser”, ? Percebi o meu momento de falência quando ficava tentando me encaixar nas caixinhas. Tentei seguir na vida acadêmica, trabalhar direitinho. Mas não deu certo. Não conseguia sustentar minha filha nesse formato. Tudo parecia que era uma engrenagem que ia me moendo. Num ritmo de trabalho em subemprego, bares, você não tem espaço para sua própria subjetividade. Na gringa, você vê que a galera tem um subemprego, estuda, faz outra coisa, consegue ter um atelier, viaja o mundo, vai pro Marrocos no final de semana. Mas mano, aqui, o subemprego… Então, aquele espaço entre eu querer e me tornar alguma coisa foi muito sofrido. Não é à toa que passei dez anos na faculdade. Não tinha outro parâmetro. Fui criada pra estudar. Tipo: pobre mas limpinho. Minha vó era operária de uma fábrica de tecido. Minha família estudou porque minha avó deve ter tido um insight assim: “Cara, 40 anos numa fábrica, acho melhor vocês se dedicarem e pegar nos livros”. Nunca tive muito dinheiro, minha mãe também não, mas pagava uma escola privada num bairro do subúrbio. Não tinha um carro. A escolha dela foi investir na minha educação.

“Vou segurar mais um pouco a fome.”

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Seu talento é reconhecido. Consegue sobreviver da sua arte?

Nunca. Digo que trocaria toda essa vida louca por um emprego fixo, de uns três contos por mês. Não queria mais nada. Jogo a toalha. (risos). Mas não agora que cheguei até aqui. Vou segurar mais um pouco a fome. Por muito tempo, mano, meu sonho era ter um empreguinho, trabalhar com algo que gosto, pesquisa. Já trabalhei como produtora de uma residência artística internacional. Vivia bem, viabilizando projetos de outros artistas de fora, uma faz tudo. Era muito divertido, uma coisa que testa seus limites, e você se surpreende com as soluções que consegue achar. E essa coisa de conviver com o artista, cada um chega com uma pesquisa, um pedacinho do mundo mastigado pra você. Te traz algo. Acho que arte é isso. Você tem um problema com o mundo, que você identificou. Às vezes você encontra solução, às vezes faz um comentário. É uma experiência que você entrega ali. Uma conversa com uma pessoa que não necessariamente viveu as mesmas coisas que você, ou que tem o mesmo arcabouço teórico, imagético, repertório. Uma pessoa que pode acessar sua experiência por uma via que você cava naquele momento. Isso é mágico. Entregar um pedaço de mundo pra alguém. Gostava de trabalhar com isso, mas arte paga mal, né? (risos).  Trabalhei uma época como livreira, e eu amo. Podia fazer isso pro resto da vida. Mas… não paga bem também.

Você já tentou escrever?

A primeira relação que tenho com expressão, é a escrita. Desde pequena. Ir anexando tudo num diário. De papel de bala a ingresso de show, embalagem de camisinha. Ia criando uma coisa. Escrevia, entrava pro campo da ficção, e começava a florear. Quando você escreve, também se coloca numa situação de vulnerabilidade, porque você está ali, exposta. Então, ficava criptografando. Escrevia, mas maquiando as coisas. Fui um pouco pra ficção. Escrevi pequenos contos, mas parei. Sinto saudade da escrita.

“Tô no rolê antes de periférica ser moda. Acho maravilhoso ser hype.”

De onde vem o apelido burguesinha de Bangu?  [Bairro onde a artista mora, no subúrbio do Rio de Janeiro]

(Risos). Porque eu aqui no Leblon, como agora, ou porque frequento balada, festa e tal. Morei uns anos na Tijuca. Acho que a galera me via muito no rolê. Essa coisa da internet, de dizerem que não sou tão “periférica” assim. Quatro conduções pra você bom pra chegar aqui? [no Leblon, distante 50 km de Bangu]. Quantas mais é preciso pra preencher o pré-requisito? (risos). No final, é um preconceito. O que que é a imagem do periférico? A periferia é completamente estratificada, tem camadas, como a Zonal Sul também, por conta da topografia das favelas. É isso. Todo tipo de gente. Eu sou só mais uma.

E quanto à questão do pertencimento?

Cresci nesse bairro. Bangu tem diversos signos que te cercam. Tem o presídio. no rolê  antes de periférica ser moda. Acho maravilhoso ser hype. Já teve uma época em que mentia, não dizia onde morava, tinha vergonha. Não era uma coisa só minha, boba. Tinha amigo que morava na Maré e dizia que morava em Bonsucesso. Era eufemizar a coisa. Já disse que morava em Campo Grande, que é mais distante que Bangu. Mas Bangu tem essa coisa dos signos, do presídio.

“Não sou fruto de um só lugar, mas de uma teia de relações e circulação pela cidade.”

Tem vontade de sair de Bangu?

Não sei mais. No meio dessas críticas que me deixaram meio mal, ficava felicíssima porque andava em Bangu e não esbarrava com ninguém das artes. No meu bairro é muito prazeroso isso, ir na padaria e não encontrar ninguém conhecido. O problema é a violência, não tem um espaço de convivência. Minha filha é adolescente… Mas não tenho raízes lá. Não moraria fora do país. Achei um saco a Europa. O fato é que a gente não tem noção disso aqui. Moramos num país continental, que tem uma língua só. É muito incrível. A gente consegue se comunicar na rua, cantar a música da rádio, chega num ponto e pergunta pra fulano se passou seu ônibus. Amo gente ordinária, ouvir a conversa do outro no ônibus. Não quero ficar falando só com uma bolha de hipster. Você na Alemanha, todo mundo fala inglês. Na tua bolha, ? Lá fora a gente passa por experiência incríveis, come-se bem. Qualidade de vida dessa ordem, de ter um subempreguinho lá e sobreviver. É a única coisa que seduz mais. Porque frio, e não ter um pagode num raio de quilômetro me deprime.

O que significa ser uma Avenida Brasil engarrafada, como você já se autodenominou?

É uma metáfora pra dizer que estou em trânsito. Trânsito lento (risos), porém… Não sou fruto de um só lugar, mas de uma teia de relações e circulação pela cidade.

“Ninguém é essa merda, ninguém é o que parece nessa distância que essa mídia cria.”

Você já disse que é uma ficção possível, uma ficção crítica…

Meu pai era programador, minha mãe trabalhava na Embratel. Eu tinha acessos à máquinas, muito cedo tive um [computador] 486. Desde o início frequentava salas de chat, ICQ. Amava fórum online, frequento até hoje. Mas acho que mesmo tendo começado cedo, a gente vivia com um pezinho no mundo real. É diferente dessa geração de hoje, que nasceu imersa nas redes. O que é esse adolescente nisso tudo? O tempo todo se referenciando através de uma imagem construída. Porque é ficção. Foi esse o meu estalo. Essa imagem é uma ficção, o avatar é uma ficção. O que eu fiz foi expandir, exagerar, levar para um outro nível de grandeza. E acho que isso, de alguma forma, expôs todo mundo. Estamos lidando com personas construídas. Ninguém é essa merda, ninguém é o que parece nessa distância que essa mídia cria. A diferença entre fato e ficção, é que a ficção é um fato construído, assim como todo filme ficcional é um documentário sobre seu tempo.

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Sua persona está permanentemente fazendo uma crítica?

Não. Agora me divertindo (risos). Mas quando comecei, usando principalmente o Instagram, tinha ali uma questão, convivia com imagens que, de repente, não eram mais apenas imagens midiáticas das mulheres. Como mulher, a gente cresce balizada por essa imagem publicitária em outdoor, capa de revista, anúncio na TV. E isso não é despropositado, mano. Cria uma série de mercados, isso vai longe. A indústria da beleza, padrões de comportamento que são reiterados o tempo todo. O que eu pesquei da convivência com essas outras imagens, mulheres se fotografando na vida cotidiana, é que não eram mais só essas imagens filtradas. Lógico que as mulheres acabam por incorrer a padrões pré-estabelecidos da representação de si, mimetizando a publicidade, mas começam a surgir alguns ruídos. Acho que foi uma tomada de consciência coletiva, com mulheres questionando desde a questão dos pelos, com a aceitação do corpo.

Essa persona foi uma criação planejada?

Eu faço a análise do meu trabalho em retrospecto, mas na época não tinha exatamente um plano. A argentina Amalia Ulman, que estudou nos EUA, fez um projeto de Instagram em que criava uma persona dela mesma, que virava uma it girl. Ela avisou a uma série de galerias que ia começar o projeto, documentou começo, meio e fim. Um chinês que coleciona arte digital comprou, e ela acabou indo para uma galeria dessas grandes. Ela fez um passo a passo. Meu estilo é outro. Ia fazendo e aprendendo com os processos, mudando o tempo todo. Hoje olho pra trás e não me reconheço em trabalhos antigos. Estou com outros interesses. Foi um processo coletivo, mulheres ao redor do mundo. Mas a gente dá dois passos pra frente e três pra trás. Na Argentina, essa questão do aborto quase foi.

“Estamos vivendo esse ‘1984 ‘ […] todo mundo tem que concentrar o ódio por dois minutos por dia contra alguém.”

Como você vê a onda de censura na artes, que ocorreu recentemente no Brasil?

Está rolando um descompasso. A direita está extremista, mas a esquerda também. Já fui censurada pela classe artística. Já tiraram um trabalho meu da parede, já destruíram, me humilharam publicamente. Aí não chamam isso de censura? Ninguém escreveu sobre, não saiu notinha em lugar nenhum. Todo mundo fingiu que não viu. Estamos vivendo esse “1984”(romance distópico, do escritor inglês George Orwell, publicado em 1949). Muito louco, ? Ele fala dessa tele-tela, que passa umas mensagens de ordem e todo mundo tem que concentrar o ódio por dois minutos por dia contra alguém.

Consegue comercializar sua arte?

Ainda não. Vou fazer minha primeira individual. Tenho que dar esse passo. Escreveram muito sobre o meu trabalho, se debateu muito, mas não colhi os frutos. Agora quero colher, nem que sejam podres. Quero viver disso, e o mercado pede um produto.

No meio dessa loucura toda, você é feliz?

Com um latão de Brahma na mão (risos). Sim, acho que tenho inclinação para a felicidade, mesmo no caos.

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