JULIA LEMMERTZ: POLÍTICA, CULTURA DA CELEBRIDADE, CENSURA E… MARTIM
Julia Lemmertz, onde você se encaixa quando o assunto é celebridade?
As revistas foram se proliferando, blogs na internet, coisas que aparecem e a gente não sabe de onde veio nem para onde vai. Os meios de comunicação foram ficando ávidos sobre a vida dos “popstars”, digamos. Parece que tem que alimentar isso. A profissão do ator agora é mais perseguida, mas as pessoas não querem passar pelo perrengue, elas querem o sucesso: a vida vai ser brilhante, elas vão aparecer na capa de revistas, fazer um programa na TV. Isso vende. Essa cultura da celebridade botou todo mundo no mesmo caldeirão. Mas cada um é cada um. Tem gente que se sente mais à vontade em se expor, mostrar a casa, o carro, a família, o cachorro, a babá, o bebê. Querem compartilhar essas coisas. Ok. Mas isso vai criando uma percepção errada sobre outros atores, que foram colocados no pacote da celebridade. Não sou uma celebridade, sou uma atriz. Tenho minha vida exposta, tento preservar na medida que posso. Coloquei no Instagram foto do meu filho porque ele estava se formando, e isso foi parar numa revista. Burra eu, que abri uma conta no Instagram para divulgar peça, filme. Isso é um conflito também: até que ponto você compartilha ou não. Minha vontade é viver numa concha, como uma ostra. Porque é desrespeitoso. E não tem nada a ver com o trabalho que a gente faz. Não serve para nada. Mentira dizer que divulga. Só distorce.
Independentemente de ter fama ou não, você não acha que muitas vezes nos sentimos mais especiais do que realmente somos?
A fama, ser reconhecido e incensado, estar em evidência, dá uma falsa percepção de que você é mais especial em relação aos outros. Na verdade, isso tudo é uma loucura. Você pode estar fazendo algo muito bacana, que gosta imensamente, e ninguém dá crédito. Mas tem importância para você. Acho que temos sempre que “voltar para a Terra”. É legal que as pessoas gostem do seu trabalho. Entretanto, a autocrítica tem que estar colada, falando com o ego, dizendo: daqui a pouco isso passa, você cai… Porque é efêmero, é uma ilusão. Tem gente incrível fazendo coisas muito especiais e que não é famosa, não foi descoberta.
Te ocorre, vez ou outra, que poderíamos ser mais úteis como seres humanos fazendo coisas que possam beneficiar o outro?
Se temos alguma consciência da passagem da vida, devemos nos perguntar o que estamos fazendo aqui e qual a razão dessa vida se cumprir em um tempo que não sabemos quando. O meu trabalho é mais importante do que o daquela pessoa que está cuidado de crianças? O trabalho de ator te dá uma abrangência grande. Sempre me pergunto quantas pessoas podem se sentir atingidas com o que estou interpretando. Fiz uma personagem que era uma pessoa terrível ética e moralmente. Fiquei mal, pensando por que estava fazendo aquilo. Não acho que temos que fazer só personagens bons, mas é que o mundo está tão rasgado de gente ruim… Ao mostrar um personagem desses, você se pergunta: quem se beneficia disso? A gente pensa que fazer um vilão é bacana, porque vilões têm um lado fascinante. Estamos atrelados à sobrevivência, ao próprio umbigo, ao que a gente vai reter para gente, porque a vida está difícil, você tem que se manter, trabalhar, ganhar dinheiro, pagar contas. Ninguém mais olha para o outro. A gente está nessa situação porque as pessoas pararam de ser solidárias. Isso me fez refletir sobre o que eu faria como pessoa, além de falar através do meu trabalho.
E o que você faria?
Não é dar esmola. É o que que eu posso compartilhar por ser atriz. Tenho uma terra em Bananal, na Serra da Bocaina. Os jovens dessa cidade não têm o que fazer, porque não existe cinema, um lugar para fazer sarau, ler poesia e livros. Esses jovens vão ser os adultos de amanhã, vão votar, escolher os políticos. Você só faz as suas escolhas a partir daquilo que aprende, do que é como material humano. E daí pode falar: isso aqui não é bom, eu não quero, o governo é corrupto, a religião não me interessa. Mas você tem que ter um conhecimento sobre o que está falando. A educação só se estabelece quando você tem a arte e a crítica sobre o que está vivendo. Você pode ter voz, porque aprendeu. Penso que posso abrir um leque de possibilidades para eles. Não acho justo eu ir para uma terra maravilhosa, ficar olhando as estrelas e não dar algo em troca desse lugar. *Julia Lemmertz é embaixadora da Actionaid, organização internacional que trabalha por justiça social, igualdade de gênero e pelo fim da pobreza.
“Não existe direita ou esquerda. […] Existe uma posição sua, pessoal, sobre aquilo que você quer mudar.”
O que você está falando tem a ver também com consciência política.
Que é o que precisamos mais do que nunca. Estávamos nessa de dizer não, de dizer isso é inaceitável. Mas agora não podemos só dizer não. A gente tem que dizer sim para aquilo que acreditamos. Dizer não e ir para as ruas é importante. Mas é o sim que vai manter a gente na luta, na mudança. Os meus, os seus, os nossos direitos… Está tudo indo por água abaixo, e a gente dizendo não. Mas o que vamos realmente pleitear? Como vamos formatar uma ideia que todo mundo compartilhe? Porque esse é o problema: há uma cisão. Todos estão achando que está tudo errado. Gente que diz que é de direita ou de esquerda. Mas não existe mais nada disso. Existe uma posição sua, pessoal, sobre aquilo que quer mudar. Precisamos nos manifestar. E para conseguir ser ouvido não adianta internet, Facebook. Ninguém sai de casa, ninguém mexe o rabo para fazer nada. E quando tem uma manifestação, ela dura meia hora, porque logo chega a polícia jogando gás lacrimogênio. Fui a uma manifestação pacífica sobre o que era inaceitável sobre vários casos. O da UERJ (a universidade carioca foi relegada a uma situação de penúria), das votações no Congresso, da violência contra a mulher, negros e índios. Fomos enxotados, saí às lágrimas pela estação do metrô. Para quê? É a cultura do medo, da repressão. Estamos nesse lugar.
Você foi muito atuante na campanha “342 Artes”, contra a censura e a difamação que ocorreu a partir do caso do fechamento da exposição “Queermuseu”. Acredita que existe uma onda de conservadorismo crescente? Ou grande parte da população sempre foi conservadora, e a diferença é que agora as redes sociais deixam isso mais claro?
Hoje em dia acontece uma coisa interessante: você não viu, não sabe o que é, mas alguém te contou ou você viu o exagero de uma situação. Aquilo vira uma verdade. Mas o que aconteceu foi outra coisa: uma exposição, um artista, as pessoas podiam chegar se quisessem, e estava lá uma criança que tocou no pé do artista com o consentimento da mãe. Não tinha nada de pornografia, pedofilia, zoofilia. O que acontece em rede social é que você não tem cara, não tem identidade. Pode falar barbaridades, dizer que vai atropelar a Fernanda Montenegro porque ela foi a favor da não-censura das artes. E isso é assustador. Não é nem uma onda conservadora. É uma violência. Eu boto coisas no Instagram e leio barbaridades. As pessoas xingam. Esse tipo de confronto não me interessa. Mas respondo e bloqueio. Depois caio em mim, e vejo que estava há duas horas “nesse” lugar, brigando com quem não sei quem é, que não está na minha frente e provavelmente nem exista. Enquanto podia estar lendo ou decorando um texto. Tem um conservadorismo, mas isso não é uma onda, não apareceu do nada. Esse monstro foi sendo criado. No momento em que entrou o Lula (ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva), em que as classes menos abastadas começaram a ter alguma ascensão, a classe média alta ficou louca com isso. A onda do conservadorismo tem a ver com o medo. O medo de perder privilégios.
Com a polarização do debate desde o impeachment da presidente Dilma Rousseff, muitos atores vieram à luz defender suas posições — seja à direita ou à esquerda. Até que ponto é importante a participação do artista na discussão política?
É importante à medida que você tem uma posição a tomar. Mas preciso ter consciência de que você é figura pública, e vai dar voz a alguma coisa. Não pode deixar, porém, de se manifestar por isso. Antes de mais nada, você é cidadão, paga impostos e vota. Os direitos são para todos. Não temos privilégios a mais por sermos atores, aparecer numa novela, fazer uma peça de teatro, estar no cinema, ganhar um prêmio. Isso é trabalho que chega às pessoas, que inspira. Você pode ser modificado para sempre por uma obra de arte. Sou atriz e continuo sendo inspirada o tempo inteiro. A arte tem um valor tremendo numa cultura. E a gente está sendo achincalhado. Isso é muito triste, mas é compreensível dentro do quadro de penúria intelectual em que a gente vive no mundo. Nós, artistas, viramos párias, porque mamamos nas tetas do governo através da Lei Rouanet. Um contrassenso absurdo, porque nós artistas nos manifestamos contra o governo.
“Não, nunca fui sexualmente assediada.”
Nos Estados Unidos, recentemente veio à tona uma onda de revelações de casos de assédio sexual na indústria do cinema — um deles mudou o curso da carreira do ator Kevin Spacey. No Brasil, o caso do ator José Mayer fez ecoar um grito contra esse tipo de comportamento. Qual sua posição sobre isso? Já foi assediada?
Tudo isso vindo à tona faz com que as pessoas se toquem: assédio não é legal. A gente está num momento em que todo mundo se manifesta. Acho genial. Não só para falar de assédio, mas sobre a violência sexual que acontece dentro das próprias famílias, contra a mulher, meninas e também meninos. As pessoas às vezes não denunciam porque não têm acolhimento. E ainda ouvimos que a culpa foi da mulher porque estava de saia curta. É importante que se abra esse espaço para as pessoas se defenderem, e para que assediadores e violentadores saibam que não podem tudo. O consentimento tem que existir, porque senão gera violência. No caso do Zé (o ator José Mayer, acusado de assédio por uma figurinista da TV Globo), não sei o que dizer. Gosto muito dele, tenho carinho, sempre foi um cara bacana com a mulher, a filha. Um ator interessantíssimo. Então, é horrível isso. A coisa ganha um lugar maior quando vai para o Facebook, vira um caso nacional. É foda, mas você tem que responder pelos seus atos. O caso do Kevin Spacey começou com um cara falando sobre algo que aconteceu 30 anos atrás. Por que esse cara está falando disso agora? Mas acho saudável que se fale, até para que pessoas com menos condições vejam que é possível se manifestar. É preciso que haja meios legais de reconhecimento disso, que as pessoas sejam punidas, que não fique só na esfera da fofoca e da rede social. E não, nunca fui sexualmente assediada.
Como você lidou com o fato de ficar só, depois de um casamento de 22 anos?
Ficar só é da minha natureza. Comecei a morar sozinha muito cedo, sempre gostei de ser independente. Claro que é uma delícia compartilhar a vida com alguém, mas acho que antes tem que ser muito bom você com você mesmo. Se precisa do outro para ser feliz, para ficar bem, tem alguma coisa errada. Dentro de um casamento você tem que conseguir estar junto também estando só em alguns momentos. Não é porque está casado que você é um, continua sendo dois. Tem o que agrega, o que gera conflito, o que inspira. São trocas, uma simbiose que pode ser desconectada. E eventualmente pode acontecer de você estar num casamento e se sentir profundamente só, um sozinho que é ruim. É a solidão de não conseguir estar consigo mesmo nem ter a troca com o outro. Isso é muito triste. Casada ou não casada, gosto de preservar o meu lugar comigo mesma. Acredito que a gente vem sozinho e vai sozinho. Não vamos de mãos dadas com ninguém.
Isso tem a ver com finitude…
A finitude é uma incógnita. De fato, o fim é todo dia. Todo dia você vai perdendo um pouquinho. Vai ficando mais velho, vai doendo uma coisa aqui, outra ali. Tem a ver com a passagem da vida. Me sinto jovem, mas sei que meu corpo já não acompanha tanto a minha juventude interna. Só penso em não ficar doente. Quero envelhecer tendo essa vontade de estar aqui, me manter interessada pelas coisas, pessoas, livros, tocar um instrumento, fazer alguma coisa por alguém. Acho que isso que vai movendo até você evoluir para um outro estágio. Mas é inexorável, é para todos.
“Acredito em realidades paralelas, existem coisas acontecendo simultaneamente.”
Você tem fé, acredita em alguma coisa?
Fui batizada na Igreja Católica aos 25 anos. Estava grávida da minha filha e uma tia gaúcha achava que era um absurdo não ser batizada. Pensei que uma benção não iria fazer mal. Mas tenho com a Igreja Católica uma relação muito… Jesus, se realmente existiu, não tem nada a ver com a Igreja Católica. Ele não falava em adorar santos, imagens… A questão era outra. “Amai seu próximo como se fosse você mesmo”. Acho muito lindo pensar que teve alguém que morreu por causa disso. Ele era um ser político, que queria repartir o pão com igualdade, irmandade. Que lutava contra essas forças todas horrorosas. Mas sou religiosa num outro sentido, mais budista. É muito pouco provável que a gente exista só aqui, que isso seja tudo que a gente tem. Acredito em realidades paralelas, existem coisas acontecendo simultaneamente. Este planeta aqui não é o único povoado. Não sei vamos para algum lugar ou não. Isso pouco interessa. A gente existe agora. Sou uma pessoa de fé na vida, nas pessoas, na natureza.
“Acho que ele me deu uma desestabilizada. Veio para me fazer pensar qual é o fim de tudo isso?”
(Sobre o nascimento do neto Martim)
Sua filha mais velha, Luiza, te deu o primeiro neto, Martim. Tornar-se avó trouxe algum tipo de reflexão?
Ah… o Martim. Tenho fé no Martim. Com pouco mais de um aninho, ele já tem personalidade. As crianças estão vindo com um chip diferente, sabendo um monte de coisas e aprendendo muito rápido. Precisamos ter um cuidado imenso com elas, porque é esse mundo caótico que essas crianças vão herdar.
A atriz Mariana Lima disse que acha o mundo atual bastante perigoso. E que hoje não teria filhos por conta disso.
Eu já pensava nisso quando tive meus filhos. Achava, talvez ingenuamente, que eles seriam pessoas muito legais, que melhorariam o mundo. Você pode evitar ter filhos, mas acho que eles de alguma forma escolhem a gente. Tive a Luiza sem planejar, sem poder. Estava sem trabalho, voltando ao Brasil depois de muito tempo fora. O Miguel também não foi planejado, mas eu quis ter mais um filho. Aí o Martim veio, e nasceu no dia 15 de novembro, Dia da Proclamação da República (risos). É sempre uma esperança.
O que nos faz mais feliz é uma combinação de amor, sexo e comida, segundo a Meryl Streep. O que te faz mais feliz?
Uma combinação de paz interior, uma confusão criativa louca capaz de me tirar do chão. Isso move a gente para várias coisas, não só para o trabalho mas para a vida, para o sexo, sem dúvida. Tenho vontade de fazer algo pelo comum. Não quero só para mim. Não é compartilhar as coisas, mas engendrar algo que seja comum. Refazer conexões interessantes. Estou num momento de encruzilhada, de reflexão, que é interessante mas também um pouco perturbador. Nunca fiquei nesse lugar. Mas a vida vai indo, profissionalmente você vai progredindo, vem os filhos… Aí tive o Martim… Acho que ele me deu uma desestabilizada. Veio para me fazer pensar qual é o fim de tudo isso. Para onde a gente evoluiu? São essas questões que me rodeiam agora.
É otimista quanto ao futuro?
Vai piorar antes de melhorar. A questão é mais profunda. Estamos falando superficialmente de política, mas acho que vamos ter que chegar num ponto limite, que ainda não chegamos, de muita indignação. E com todas essas políticas mundiais juntas, desconsiderando as mudanças climáticas… A gente está lascado. Apesar disso, sou otimista porque acho que coisas vão acontecer, pessoas bacanas vão se juntar e se organizar. Tenho a sensação de que há esperança. Ser pessimista numa hora dessas é chover no molhado. Estamos na merda, vamos ter que limpar. Enquanto há vida, há luta. Há saída. Ela é trabalhosa. Mas é de senso comum. É de todo mundo. É parte de mim, de você. Mas quando seis famílias multimilionárias que existem no mundo finalmente se tocarem de que não adianta nada terem tanto dinheiro, porque vão para o mesmo buraco que todos nós, talvez seja tarde demais.
♥Agradecimento de aCriatura ao Restaurante Prana