TOZ: O GRAFITE DE RUA, BANKSY, O TABU DAS DROGAS E O MUNDO FEMININO
por Heloisa Eterna | fotos Alexandre Campbell
Toz, você costuma dizer que Nina, uma de suas personagens recorrentes, retrata um pouco o ambiente familiar em que viveu, de muitas mulheres. O universo feminino influenciou seus traços no grafite?
Sou um admirador da forma de viver feminina, convivi muito com minhas duas avós e tias. Sempre fui beijado, acariciado, tive muito cafuné, mimado. Eu acompanhava as sessões na casa da minha vó, quando iam as manicures, todas elas fazendo as unhas… Me fantasiavam de menina! Lembro muito dessas cenas. Isso tudo me ajudou a desenvolver essa sensibilidade. O universo feminino tem essa leveza, poder chorar, dizer que ama. Essas coisas todas que no universo só masculino é renegado.
Se a Nina fosse uma pessoa, como você a descreveria?
Eu desenhava desde pequeno, fiz curso de quadrinhos. Tinha essa necessidade de criar um personagem com personalidade, o que era atípico para um grafiteiro, que faz personagens diversos mas não cria uma personalidade. Me inspirei no astral de uma sobrinha minha, que era uma menina introvertida, romântica, calada. Foi por isso até que fiz os olhos dela mais fechados. Durante muito tempo fui desenhando a Nina de formas diferentes, mudo o cabelo, mas ela tem sempre a mesma cara. Aprendi que a mulher passa por mais fases que o homem na vida. E todas as meninas e mulheres começaram a se identificar de alguma forma com a personagem.
“O cara que está lucrando todo mês com aquelas propagandas não informou e não deu nada em troca para a sociedade.”
Nas décadas passadas, por ser considerado ilegal, o grafite era uma grande aventura porque acontecia na calada da noite para não chamar atenção. Hoje, com a legalização, acabou a adrenalina?
Não. De fato, na lei, você pode ser preso, é só o dono do muro não estar de acordo. A legalização depende da autorização. Isso tem uma diferença enorme, porque o espírito do grafite é você ir lá e fazer muitas vezes sem pedir autorização. Eu peço autorização aqui na minha vizinhança. Mas gosto de adrenalina, de pintar de uma forma mais livre, não é nem ilegal… Se tem um outdoor em branco no meio de uma avenida, me acho no direito de ir lá e fazer meu trabalho. Porque o cara que está lucrando todo mês com aquelas propagandas não informou e não deu nada em troca para a sociedade. Eu estou dando arte. Não gosto de agredir ninguém nem de vandalizar.
Mas esse pensamento é comungado por todos no grafite?
O grafite hoje tem a mesma vontade de vandalizar como dez anos atrás. Os garotos mais novos mudaram a forma de ataque. Eles usam extintores para grafitar trem, metrô. Na minha geração tinha tanto espaço na rua que não havia a necessidade de pintar um trem. Hoje, os moleques têm menos espaço e mais audácia.
Isso é pichação ou grafite?
Grafite mesmo, ilegal, letras que ninguém entende. A diferença de um para o outro é estética. A ação, a vontade, o material é o mesmo. E hoje tem os painéis gigantescos, já é diferente. Faço grafite há 18 anos, mas de dez anos para cá evoluiu muito. Valores de telas, galerias interessadas, coleções, a cidade recebendo o grafite. Eu pintei a parede do Marina Hotel, no Rio.
Qual é o segredo para ser descoberto por um galerista e ganhar status de artista?
Eu pinto o que vivo, respiro, o que me inspira. Não pinto para gostarem. Senão, ia só fazer a Nina. Não tem fórmula, mas acho que o conselho para quem está começando é que trabalhe verdadeiramente, não olhando muito para o que os outros estão fazendo ou pensando. Encontrar pessoas confiáveis para buscar opinião sincera. O grafite está nas ruas, nas galerias. É uma realidade desde Basquiat (o neoexpresionista norte-americano Jean-Michel Basquiat). Existem artistas que vieram do grafite, artistas contemporâneos que estão em coleções. Não são apenas Os Gêmeos. Em todos os lugares do mundo há representantes da street art fazendo um trabalho de qualidade, e sendo reconhecidos.
“Eu nunca vou parar. Podem pintar (cobrir os grafites). Também tenho tinta. Vou botar em outros lugares.”
Você já disse que o grafite em muros é uma arte efêmera, que uma vez na rua o artista não tem controle sobre ela. Incomoda quando um trabalho seu é apagado?
Já me incomodei mais, já tive 20 anos de idade, macho para caramba, cheio de testosterona, querendo matar todo mundo se me cobrisse. Mas nunca cheguei às vias de fato por isso. É chato, porque você se dedica. Mas hoje em dia quando vou para rua, vou para fazer alguma coisa rápida, pela qual não tenho apego, como o Shimu (outro personagem de Toz), que gasto dez minutos para fazer. Se o cara cobrir, não tem problema.
Mas muitas vezes, como no Rio e em São Paulo, são as prefeituras que apagam. Isso tem gerado muita polêmica.
Eu nunca vou parar. Podem pintar (cobrir os grafites). Também tenho tinta. Vou botar em outros lugares. No entanto, acho que a cidade é muito maior do que meu nome. Porra, quem sou eu para reclamar do Rio de Janeiro? Não dá. Ou de São Paulo. São cidades grandes. O prefeito, ou seja lá quem for, que está gerenciando esse navio gigantesco, tem o direito de fazer o que quiser. Não questiono isso. Porque quero continuar pintando. Agora, se os caras começarem a me levar para a cadeia, aplicar multa, aí vou reclamar. Mas é uma pretensão muito grande dos artistas achar que o grafiteiro é tão importante que não merece ser coberto. Para isso existem projetos, espaços onde você pode fazer grandes painéis. Penso que, se cada um que fizer um grafite, fizer uma merdinha na rua e o cara não quiser que apague, aí vai virar uma loucura. Como vai ser isso daqui a 20 anos? Ninguém apagou nada. A cidade merece ser renovada. Mas com planejamento. No verão, grafita-se. Acabou o verão, a prefeitura cobre. Isso dá uma calendário para a cidade. O que acho errado é a desorganização. Você vai lá e pinta uma parada maneiríssima, a prefeitura vai lá e cobre. Aí vem um moleque e faz uma puta de uma cagada, a prefeitura vai e deixa. Acho esse critério muito louco. Aqui na Lagoa (Lagoa Rodrigo de Freitas, RJ), os caras só não apagaram o São Jorge. Apagaram Os Gêmeos, apagaram não sei o quê. Como você pode querer achar isso justo?
“Para mim, o Banksy é uma espécie de Batman/Bruce Wayne, essa galera que você não sabe direito se existe, se são vários ou um só.”
Qual foi a maior área pintada por você?
Foi na região da Pedra do Sal, área da zona portuária do Rio de janeiro, de 70 metros de altura por 35 de largura. Levei 17 dias e consumi mais de 1.500 latas de tinta.
Acredita que o inglês Banksy, que esconde sua identidade e cujo trabalho é conhecido pelas mensagens politizadas, ajudou a valorizar o grafite? Ou o que ele faz é puro marketing?
É um estilo que ajudou a dar veracidade ao trabalho dele, porque o Banksy é um cara que pode responder a muitos processos. Não é só uma questão de marketing que existe por causa desse anonimato que ele mantém, é um lado romântico do grafite que acho bem legal. Mas do mesmo jeito que tem uma porrada de gente que acha Banksy maravilhoso, tem uma porrada que está puta com ele. Não só pelas mensagens políticas, mas por uma questão da invasão de propriedade. Mas é um cara criativo demais, que está sempre com uma jogada nova na frente para impressionar. Então respeito muito. Para mim, o Banksy é uma espécie de Batman/Bruce Wayne, essa galera que você não sabe direito se existe, se são vários ou um só.
Banksy disse que pretende retirar seus trabalhos dos leilões e galerias, e voltar para as ruas. Segundo ele, “o sucesso comercial é um fracasso para um grafiteiro”.
O cara já é uma lenda viva. Às vezes as pessoas dizem coisas que o cara nem falou. Também não é porque ele falou que é uma verdade absoluta para mim. Discordo disso, porque o que faz a morte do grafiteiro é ele se entregar só para o comercial, que na verdade dá suporte, estrutura para você realizar o que quer, seja voar de balão, pagar suas contas. Tem que saber equilibrar as coisas, a vida é isso. Agora, você tem que ser coerente com o seu discurso. Ele é um cara que critica muito as grandes marcas e tudo mais. Mas de repente isso faz sentido para o Banksy, que já está com dinheiro bastante para parar agora de vender e se dedicar à rua. Uma escolha pessoal dele. Mas com dificuldades financeiras… Vou convidar o Banksy para passar uns tempos no Brasil, ficar duro, quero ver se ele vai falar a mesma coisa (risos).
Quanto custam suas telas?
Minha galeria é a Movimento, do Ricardo Kimaid Jr., com quem tenho uma relação de confiança. Procuro não ficar por dentro dos valores, até porque gosto muito de presentear. Se fico nessa neurose de prestar atenção no metro quadrado que pinto, fica difícil. Às vezes, ele me pergunta: “Você vai dar um trabalho de R$ 20 mil?”. Bom, eu não estou contabilizando esse valor quando presenteio. Mas custam até R$ 70 mil.
“Me impressiona ver como Brasil é muito atrasado nessa questão, é um tabu muito grande. […] A discussão tem que ir além do direito a fumar ou a cheirar.”
(Sobre a descriminilização das drogas)
O grafite é uma arte democrática, no sentido de que está na rua, ao alcance dos olhos de quem passa e não precisa pagar ingresso em museu. Seria uma forma de inclusão social?
Sem dúvida. Fui convidado para pintar a sede do Degase (Departamento Geral de Ações Socioeducativas, órgão do Governo do RJ, que executa as medidas judiciais aplicadas aos adolescentes em conflito com a lei). Falta estrutura, falta espaço, falta investimento. Esse problema não cabe só aos governantes. É uma responsabilidade de todo mundo, das empresas, das pessoas que podem ajudar os jovens a descobrir novos caminhos. Falta boa vontade da sociedade civil.
Os problemas dos jovens está também ligado com as drogas…
Me impressiona ver como o Brasil é muito atrasado nessa questão, é um tabu muito grande. Não tem a ver somente com possibilidade de liberação das drogas ou não. Essa discussão tem que ser posta para todos. A maioria dos jovens do Degase está envolvida com o tráfico de drogas nas comunidades. A Justiça prende esses jovens, enquanto poderia fazer outras ações para evitar, por exemplo, a superlotação. A discussão tem que ir além do direito a fumar ou a cheirar. A forma como se combate as drogas não está dando certo. Só gerou derramamento de sangue, famílias perdidas. Está na hora de a gente estudar mais sobre o assunto, tirar também proveito financeiramente, a exemplo de muitos países que já produzem materiais derivados da maconha e remédios. Até nisso estamos atrasados. O mundo todo está se adiantando.
Se pudesse escolher um símbolo que é ícone de uma cidade ou país, onde deixaria sua marca se fosse permitido?
Adoraria pintar algo muito grande no Rio de Janeiro. Em Hong Kong, onde grafitei o interior de um restaurante que tinha obras do Murakami (Takashi Murakami, artista contemporâneo japonês), tem prédios como eu imagino um dia pintar, muito, muito altos. Mas um ícone… Quem sabe grafitar a Muralha da China? (risos)