GREGÓRIO DUVIVIER: HUMOR COM OFENSAS A QUEM PODE RESPONDER E FÉ NO ATEÍSMO
Gregório Duvivier, não acontece de se sentir pressionado, às vezes por você mesmo, a ser inteligente?
Isso acontece muito, porque é muito tentador. Você fala e um monte de gente começa a concordar, a retuitar, a compartilhar… E quando você vê: “Uau…Eu mudo a realidade, sou uma pessoa que tem algo a dizer”. Mas mesmo tendo algo a dizer, é um perigo achar isso. O lugar do humorista, do cronista, que é o que eu faço, é o do leigo, do cara que está olhando o mundo pela primeira vez. O olhar que eu tento ter é o da criança, do maluco, do estrangeiro, da pessoa que olha o mundo pela primeira vez, aquele que se dá ao direito de não entender. Ser peremptório, as verdades absolutas, as certezas… É um perigo fodido… É o contrário do exercício intelectual de duvidar. Não entender é um luxo muito importante que a gente tem que se dar. A obrigação da inteligência é oposta do que mais me interessa, que é o exercício lúdico-intelectual-humorístico.
Ser engraçado no dia a dia chega a ser uma obrigação?
Me permito não ser engraçado. Porque graça para mim é um animal muito arredio, arisco e avesso à dominação. Quando você corre atrás dela, ela foge. Em geral, o cara que não tem graça, não é porque ele não tem humor, é porque ele está perseguindo a graça. Nunca me obrigo a ser engraçado, tento falar a verdade, achar o que eu sinto. Tenho a impressão que a verdade é engraçada.
Existe uma linha tênue entre o que é humor e o que pode ser ofensivo?
Existe. Essa linha flutua. Não é fácil você dizer o que é ou não ofensivo para o outro. Mas sou a favor de que a gente ofenda livremente aquele que pode responder. A religião está muito bem aparelhada para te responder. Ela tem membros no Congresso, muito dinheiro, tem o domínio da palavra, tem meios de comunicação e influência. É brigar com cachorro grande, certo? Quando você briga com uma pessoa que não tem acesso a nenhuma dessas categorias… Quando você ri do cara que fala errado, que se veste mal, que não sabe se comportar… A ‘pobrofobia’ é institucionalizada, ela não é crime. Para mim não tem graça porque você está rindo de uma pessoa que já apanha pra caramba. O humor brasileiro volta e meia cai nessa de bater no pobre, na mulher, no negro, no travesti. Basicamente é bater nas mesmas pessoas que a polícia. Isso é muito sério. Um bom parâmetro é: “Estou batendo nas mesmas pessoas que a polícia?”.
A religião em geral lida muito mal com o humor. Numa situação hipotética, você temeria mais: ser excomungado pela Igreja Católica, enfrentar a ira de muçulmanos fundamentalistas ou o ódio de evangélicos?
É chato falar “os evangélicos”, porque são muito vastos. Tem os batistas, os pentecostais… Experimento o ódio de neopentecostais, os mais fervorosos. A ira desses fundamentalistas não é tão grave quanto a islâmica por uma razão: Jesus foi muito claro quanto a não-violência. O Alcorão não é tão claro, embora até cite a não-violência em alguns momentos, em outros não. Diz que você tem que convencer uma pessoa de que Alá é o maior, mas se na terceira vez ela não concordar, tem que jogar ela de um abismo. O Novo Testamento não é claro sobre o que fazer quando alguém não acredita que Jesus é o maior. E Jesus não fundou uma religião, ele não era cristão. Parece um contra-senso, porque ele era Jesus, mas ele nunca escreveu dogmas, era anti tudo isso que os seguidores fazem. Nesse sentido, o cristão, mesmo fervoroso, tem que ser muito alienado para usar essa ideologia para violência. Não que o islamismo seja, necessariamente, violento, mas o fundamentalista islâmico tem mais ferramentas para ser violento.
Qual sua fé? É ateu?
Sim. Sou ateu fervoroso, militante (risos). O barato do ateísmo é: “Se Deus existir, mudo de ideia”. E já um católico, cristão ou de qualquer outra religião, se Deus não aparecer ele não muda de ideia. A diferença do ateísmo pra religião, é que o ateu está aberto a mudar de ideia, à verdade científica, à Ciência, a lidar com os fatos. E o religioso, não. Ele vai além dos fatos. Não consigo entender isso. Desde pequeno, me lembro de perguntar assim: “Deeeus, você existe?”. Porque não aparece não só pra mim, mas também não aparece nos desastres, nas tragédias. O que é esse ser onipotente? Em compensação, acho bonito as religiões que em vez de apontar para cima, para um deus criador, aponta para os deuses mais imanentes, os deuses da natureza. Como o xamanismo. O contato que eu tive mais forte com alguma espiritualidade foi através do xamanismo. Experiências como Tenda do Suor (cerimônia do xamanismo em que o banho de vapor tem profunda conotação espiritual), contato muito forte com a natureza, com o chão, com o rio, com o mar, com os fenômenos da natureza. Você atinge outras esferas que não parecem muito as terrestres. Ainda assim, o que mais me interessa é o terrestre, é o real, o que você pode sentir na pele.
“É muito importante que a gente viva como quem vai morrer.”
O que passa pela sua cabeça quando você pensa na própria morte?
Penso muito na morte. Mas não tenho essa necessidade que as pessoas buscam na religião, de pensar na eternidade. Eternidade é um tédio, imagina você ficar vivo para sempre… Acho lindo que a morte existe, porque é ela que nos obriga a viver o presente. Sempre que penso na morte é para me jogar para o presente: “Tenho que fazer isso agora, não deixar para depois”. Para mim é muito importante que a gente viva como quem vai morrer.
Você é seguro na maior parte do tempo?
A insegurança é um presente para o comediante, para o palhaço. Aquilo que a gente mais odeia na gente, que as pessoas em geral veem como defeito, é o que a gente tem de mais precioso. No meu caso pode ser a altura, sou mais baixinho, estou ficando careca. Quando você entende essas coisas como estruturais, como algo que te constitui, não tentar mudar, botar um salto pra ficar mais alto… Isso vale também para a sua arte. Às vezes a gente quer escrever o filme perfeito, o livro, a piada perfeita. Mas é a imperfeição que torna isso único. São seus principais defeitos que fazem seu estilo. A ausência de defeitos é também a ausência de estilo.
“O outro não é, necessariamente, um bandido, um vilão odioso.”
Nos últimos tempos, discutir sobre sérias questões políticas pelas quais o país passa levou amigos ou amigos virtuais a um “divórcio”. Aconteceu com você?
Não me separei de nenhum dos meus amigos. E muitos são discordantes de mim. Aqui dentro do Porta (Porta dos Fundos, canal de esquetes de humor no YouTube) mesmo. Discordo totalmente da visão política… do Fábio Porchat nem tanto, mas do Ian SBF, do Antônio Tablet. São pessoas brilhantes, e não os acho menos inteligentes por isso, mas têm visão política oposta à minha. Somos sócios, escrevemos juntos, não teve esse divórcio. O que teve foram pessoas que me odeiam, mas que eu já não gostava. Não foi que pessoas que mais admiro no mundo, o Chico Buarque… Não, as pessoas que mais admiro ou estão no mesmo campo que eu, ou, no caso do Porta dos Fundos, respeitam muito o que penso e eu respeito o que eles pensam.
Fala-se muito em polarização…
As pessoas têm que exercitar a polarização, porque a ausência disso é o fascismo. O que define o fascismo não é ser de direita ou de esquerda. O que define é a ausência de polarização. Por isso acho a polarização maravilhosa. Em tempos de polarização tão forte, aparecem soluções que são um puta problema. Elas podem ser à direita ou à esquerda. A extrema esquerda também é horrível. Eu, pelo menos, acho abominável o Maduro (Nicolas Maduro, presidente da Venezuela), esse autoritarismo de esquerda. Acho nojento. Porque ele nega a polarização. E o que é a esquerda se ela é autoritária? A esquerda que eu acredito é o oposto disso, é a experiência radical da democracia, que aceita sempre o outro lado. O que vejo no Brasil hoje é isso, a dificuldade de aceitar que são lados complementares, que a gente precisa ouvir, discutir. O outro não é, necessariamente, um bandido, um vilão odioso.
“Nossa, Deus me livre!”
(Sobre ser candidato à presidência da República)
Quando te chamam de esquerda caviar, costumam te mandar pra Cuba ou Venezuela. Para onde você iria?
(Risos). Gosto muito do Brasil, adoro Cuba também, fui e adorei. Acho uma pena essa coisa de querer expulsar a pessoa porque ela pensa diferente.
Um grande instituto de pesquisa apontou um artista da TV como virtual candidato a presidente da República. Se fosse você, consideraria isso uma piada de mau gosto?
Nossa, Deus me livre! As pessoas costumam achar que é um cara que vai salvar. A disputa presidencial é importante, mas para mim a disputa é outra, está na micropolítica. É isso que vai mudar. Pensar em um salvador, esse messianismo que o brasileiro tem, é fascista, a esperança em uma só pessoa. Esse tipo de pensamento, e tem muito isso no Brasil, é uma preguiça política: “Alguém faça política pra mim…”. É um pensamento muito propício a ditaduras. Acho muito ruim.
Você é um otimista?
Sou. Quem acha que os tempos eram melhores, em geral é branco, homem, rico e heterossexual, né? O comediante (norte-americano) Louis C.K disse algo assim: “Negro não pode brincar na máquina do tempo, não. Porque ele vai sempre se dar mal”. No passado, qualquer data será pior do que hoje. Mulher também, toda minoria. Não que agora esteja bom. Mas existe, sim, um caminho em direção a uma sociedade mais igualitária. A gente tem que lembrar da origem da palavra reacionário. Uma reação. Os últimos 15 anos foram determinantes para… Não vou dizer que teve uma revolução no caldo social, mas teve uma mexida boa aí, gente entrando na faculdade, direitos civis começando a ser reconhecidos, o começo de um monte de coisa. Isso daí é o bastante para deixar muita gente revoltada, puta mesmo.