Marcia Tiburi

Marcia Tiburi, doutora em Filosofia e graduada em Artes | por Heloisa Eterna | foto Isabela Kassow | Julho 2017

MARCIA TIBURI: RIDÍCULO POLÍTICO, UMA CATEGORIA NA QUAL, EM CERTA MEDIDA, TODOS PODEMOS ESTAR, É O TEMA DO NOVO LIVRO DA FILÓSOFA

Marcia Tiburi, em “Ridículo político” você diz que fez o livro para chamar a atenção sobre algo muito sério: o hábito de não tratar com seriedade as coisas políticas. Se restringirmos isso ao Brasil, a que se deve esse descaso?

Se fosse possível restringir ao Brasil, poderíamos encontrar esperanças em algum modelo estrangeiro. Mas, infelizmente, o que chamamos de globalização relaciona-se diretamente a uma determinada fase do modo de produção capitalista, especificamente neoliberal, que define uma tendência econômico e política mundial. Essa tendência não é natural, ela foi orquestrada e aplicada em países com objetivos específicos. Essa tendência se dirige também ao modo como as pessoas devem viver, o modo como serão governadas e disciplinadas para a produção e o consumo. É um processo biopolítico, em que o todo da vida está calculado pelo capitalismo. A questão da seriedade é importante na medida em que nos informa sobre o estado de nossa cultura política. Levar a sério ou não sinaliza para o comprometimento das pessoas, aquele que faz com que alguém se torne um cidadão. Fazer piada sobre política não é o problema, aliás, é uma coisa até saudável. Não levar a sério a política é bem diferente. Estou falando também do descaso. Do descompromisso e também do descaso. A democracia é um valor que está na centralidade do descaso com as coisas políticas. Se podemos buscar a origem do descaso com a política na programação neoliberal, que transforma tudo em utilidade para o mercado, transformando cada pessoa em escravo da produção e do consumo, fica claro também qual é o lugar ao qual se vai chegar seguindo esse caminho.

“A esbórnia política em que vivemos é produzida e sustentada pelos objetivos do poder. O mal-estar político de nossos dias é efeito do ridículo produzido para nos afastar da política”. Esse é outro ponto do livro. Acredita que a produção desse mal-estar é intencional por parte dos políticos?

Uma das distinções importantes do livro é justamente essa: o ridículo político é um parâmetro de análise, uma categoria hermenêutica, diferente da ideia de um “político ridículo” em sentido individual. Meu livro se dedica a analisar a sociedade na qual o ridículo como padrão estético e ético se tornou capital. O ridículo político é uma forma espetacular, praticamente um modelo cênico, teatral, por meio do qual o que seria vergonhoso, o que causa mal-estar, o que parece uma aberração, torna-se estranhamente consensual, legal, e até bom de se ver. Muitas pessoas consideram “legais”, gente de bem, os deputados mais preconceituosos. Muitos votam nos mais cínicos, aqueles que, por exemplo, dizem que não são políticos em meio a campanhas políticas que são, evidentemente, políticas.  E por que as pessoas fazem isso? Podemos responder que é porque não pensam. Mas sobretudo, me parece muito mais que fazem isso porque pensam que sabem tudo. Quem pensa que sabe tudo não precisa pensar em mais nada, muito menos na forma como pensa. Muitos políticos capitalizam-se nesse lugar.  Muitos personagens que não tem outro capital, um capital moral, ou ético, ou intelectual, que não teriam estofo algum para se tornarem lideranças, descobriram como ascender politicamente por meio do que é espiritualmente mais pobre, por meio do que é mais preconceituoso, do que soa como mais incivilizado e imoral. Essa inversão de valores é que levou ao triunfo do que chamo de ridículo político. E é claro que ele é usado astuciosamente.

“O ridículo político é uma atualização nefasta que só é possível na época da sociedade do espetáculo.”

Manuel Arriaga, escritor português entrevistado em aCriatura, diz que é preciso atualizar a forma de se fazer política. Você fala que “a reinvenção da experiência política seria a única chance de produzir algo de bom, enquanto seres sociais”. Vê similaridade em suas ideias?

Não conheço o pensamento de Arriaga. Certamente, para o bem e para o mal estamos sempre atualizando de algum modo o nosso fazer político. O ridículo político é uma atualização nefasta que só é possível na época da sociedade do espetáculo.  Justamente porque a política foi transformada em publicidade. Ou seja, nos tempos em que os valores todos são relativizados diante do valor do capital-imagem. Estamos na era da publicidade, mas não só, trata-se de uma inflexão para o que há de mais vergonhoso e bizarro, do uso e da manipulação do puro e simples aparecer desprovido de toda reflexão sobre ética. Em que até mesmo aquilo que era considerado apenas útil em termos de política, e que já era questionável, foi rebaixado à mais pura brutalidade. Veja o papel dos preconceitos no discurso político de hoje. O que eu penso ser urgente é desmascarar esse estado de coisas. Quem sabe a partir daí possamos redesenhar a política segundo parâmetros mais honestos e sinceros para além do cinismo e da hipocrisia atuais.

Arriaga ressalta a necessidade de se formar assembleias de cidadãos, que já funcionam em países como Islândia, Canadá e Austrália. Ele mesmo está à frente de uma em Portugal. Você criou com outros profissionais a Passagens, Escola de Filosofia, Arte e Cultura. Não poderia ser, guardadas as devidas diferenças, um embrião de algo parecido?

A Passagens é uma escola de cursos livres que talvez possa ser embrião de outros projetos educacionais. Mas além dela, criamos, junto a várias feministas de todo o Brasil, a “partidA” que é um movimento de empoderamento de mulheres feministas para a transformação da representação feminina no cenário do machismo brasileiro. A meu ver não é possível avançarmos ética e politicamente sem que esses espaços, privados ou públicos, passem pela educação e pela formação cultural, ética e política das pessoas.

“Não se perde o ‘senso de cidadania’, nem o ‘amor ao conhecimento’ sem muita opressão e muita sedução.”

Você afirma que o ridículo político não é ingênuo: ele é uma teia para agarrar moscas. O brasileiro seria essa “mosca tonta”, que perdeu tanto o senso de cidadania quanto o amor pelo conhecimento e que segue repetindo ideias prontas sem esforços maiores?

Os brasileiros são muitos e muito diferentes entre si em termos econômicos, culturais, espirituais, religiosos, e até geopolíticos considerando a imensidão do nosso território e suas peculiaridades. Há um grau imenso de docilização dos corpos como em todos os países capitalistas, que talvez nos faça até mais anestesiados do que outros países relativamente à luta por direitos fundamentais e conquistados. Não se perde o “senso de cidadania”, nem o “amor ao conhecimento” sem muita opressão e muita sedução. O neoliberalismo como modelo do capitalismo atual é a ideologia em sentido teórico-prático, que nos maltrata e ao mesmo tempo seduz, que morde e assopra, que faz terror e aparece como salvação. Repetir ideias prontas é básico nesse contexto. As pessoas fazem isso, porque pensar com profundidade é algo do qual elas são afastadas diariamente pelos meios de comunicação de massa, pelas igrejas, pela falta de tempo para informar-se melhor, para experimentar outros processos. A metáfora da mosca eu trago de Nietzsche, filósofo que morreu em 1900, e que a usou de um modo muito feliz em um texto chamado “Sobre Verdade e mentira no sentido extramoral” quando se referia aos seres que giram em torno de uma lâmpada e que seguem sem muita noção do que estão fazendo. Nesse sentido, ela ainda traduz algo a nosso respeito.

No livro, você afirma que só nos tornamos “mais humanos” à medida que nos tornamos mais políticos no sentido de seres cientes das relações de poder e violência. Do contrário, de novo, seriamos relegados à condição de “moscas”?

Eu levantei essa questão da humanização não por ter apreço pelo termo. É um termo precário em muitos níveis. Mas como o meu método filosófico parte de um diálogo com o senso comum (coisa que Aristóteles já fazia), eu quis justamente aproveitar o apelo à “humanização” que vemos em muitos discursos para colocar o problema da política. As pessoas pedem para “humanizar” isso ou aquilo, e esperam que essa humanização se resolva em termos de “cuidado”, um termo bem importante em algumas teorias éticas contemporâneas. Humanizar não é uma questão que possa ser lida penas em chave ética se essa chave não é ao mesmo tempo política. De um modo geral, as pessoas não percebem que não há ética sem política e que toda ética leva a uma política, inclui uma política. Se a política está destruída é porque a ética também está e vice-versa.  Na verdade, o meu ponto era mostrar que aqueles que apelam para a humanização sem politização não irão muito longe, ou continuarão fazendo a coisa pela metade. Politizar aqui não é, evidentemente, partidarizar.  Temos que aprender a ver a política na vida, em sentido genérico, mais universal, digamos assim. Muito para além dos partidos e das instituições do poder instituído, o cotidiano é político.

“A vergonha é um sentimento muito particular, o que há de mais triste.”

(Sobre vergonha alheia)

Você fala que “o que mais se aproxima do ridículo político em nossa experiência é o que chamamos de vergonha alheia. A vergonha que sentimos pelo outro”. Poderia citar uma situação de vergonha alheia ao nosso redor?

A vergonha se tornou central na minha análise justamente quando percebi que ela estava em baixa na bolsa de valores morais. Sentimos vergonha alheia justamente quando percebemos que alguém não teve vergonha. A vergonha é um sentimento muito particular, o que há de mais triste. Porque implica um cancelamento do reconhecimento que esperamos ter do outro. Todos nós detestamos passar vergonha porque preferimos ser admirados, amados, aceitos. E a própria vergonha alheia é um sentimento desagradável, não nos admiramos, nem amamos, nem aceitamos a pessoa de quem sentimos vergonha alheia. Ela é a vergonha que o outro perdeu e que sobra para nós, digamos assim. Michel Temer (presidente da República) é alguém que nos coloca nessa posição cada vez que não nos representa. Mesmo aqueles que foram a favor do golpe (o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff), sentem-se mal com ele, porque ele não sabe fazer o papel de sujeito do reconhecimento que toda nação espera de um presidente. A ilegitimidade de Temer arrasta o país para os piores afetos dos quais ele é portador. Não deveríamos negligenciar isso em política.

“Todos competem por curtidas, compartilhamentos, numa verdadeira bolsa de valores em que a moeda é a imagem.”

(Sobre redes sociais)

Ao falar sobre a sociedade do espetáculo em que vivemos, você diz que  o importante para a maior parte das pessoas é o mero aparecer, sem que precise dizer algo que faça sentido ou que seja verdadeiro. As redes sociais não promovem um pouco isso?

As redes sociais administram o mero aparecer para os fins do mercado.  A imagem é o capital da sociedade do espetáculo e cada um pode “vender” sua imagem no grande mercado de trocas, ou melhor, de concorrências que são as redes. As redes fazem um treino para a concorrência em que todos competem por curtidas, compartilhamentos, numa verdadeira bolsa de valores em que a moeda é a imagem. Por outro lado, as palavras, as frases também são rebaixadas a capital no qual os demais investem escolhendo conforme preferências. Há um verdadeiro adestramento da vontade nessas redes. Todos os seus usuários trabalham de graça para as corporações que as administram acreditando que estão apenas brincando em um jogo divertido. No meio disso, todos nos tornamos, em alguma medida, otários do sistema tecnológico e digital. Há um dispositivo visual-digital no qual fomos capturados e temos que acreditar que ele faz sentido para nós.

Você afirma que o ridículo só não é mais notado porque estamos desatentos. Como ficar mais atento, não cair no ridículo ou compactuar com ele?

A meu ver, não será possível conquistar ou reconquistar a atenção perdida se não rompermos com a maquinaria da distração, com a aparelhagem, com a programação que visa, justamente, nos afastar da atenção. Mas o que é atenção? Devemos nos perguntar. A atenção é um estado da percepção assim como é a distração. Distraídos estamos desprevenidos, à mercê. Atentos estamos preparados, acordados, capazes de reagir. Há gradações diversas da atenção à distração, e somos inconscientes disso.

“Os preconceitos estão sustentados sobre idiossincrasias e as reproduzem.”

No livro, você diz “que as pessoas se interessam muito pela fama sem perceber que ela é uma deturpação para o reconhecimento”. E que “no caso dos famosos, aqueles que vivem da fama como capital, cair no ridículo é o pior dos negócios”. O que significa isso exatamente? Poderia citar alguns casos?

Em um livro anterior, chamado “Filosofia Prática: ética, vida cotidiana, vida virtual” (Record, 2014) eu já havia falado sobre isso. Que a fama é a deturpação do reconhecimento. Esse tema retorna agora, nesse livro. O que é o reconhecimento? É um termo que em filosofia remete à nossa capacidade de relação com o outro. O reconhecimento é o cerne do desejo. Cada um quer ser visto pelo outro e ser por ele respeitado. Aqui poderíamos citar os mais diversos exemplos. Os políticos buscam fama hoje em dia como um ator que seja valorizado no mercado da televisão ou do cinema. Mas enquanto esse cidadão vive nesse mercado, o político não deveria viver, pois a sua atividade não tem a mesma natureza da atividade do ator. O teatro da política é inevitável, mas a diferença entre ficção e realidade e a questão da verdade deveriam ser observadas.

Pensar e estar ciente de tudo isso lhe causa alguma infelicidade, já que são idiossincrasias humanas com as quais convivemos diariamente?

Felicidade é um conceito ético e político. “Não é possível ser feliz sozinho”, como disse o poeta, pode ser uma inverdade em uma chave romântica de leitura, mas é uma verdade se usamos uma abordagem mais social para entender a felicidade. Há um nível de infelicidade maior em função de se viver em um lugar antidemocrático, por exemplo. Em tudo, a felicidade se aproxima da democracia. Ela implica as experiências da autonomia, do desenvolvimento ético e espiritual, dos prazeres pessoais, dos reconhecimentos. Os preconceitos estão sustentados sobre idiossincrasias e as reproduzem. Não é possível ser feliz em meio a preconceitos. Seja como seus agentes ressentidos, seja como alvo dos preconceitos.

Bom, estamos longe de nos vermos livres de todas essas idiossincrasias. Você é otimista com relação ao ser humano?

Não e sim. Eu tenho uma visão dialética da coisa humana, digamos assim. A meu ver, o que nos dá dignidade é a luta, o esforço de seguir tentando construir um mundo melhor tanto no que podemos fazer em termos macroestruturais, quanto na microfísica do cotidiano. Há utopias que estão sempre à vista orientando as ações, mas há também um esforço imenso a cada passo que se dá junto a outros tantos que nos acompanham nas lutas. Então, o dever é lutar, para que tudo não fique pior.

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