JOSÉ LUIZ VILLAMARIM: UM DIRETOR EM BUSCA DO MENOS PARA ENTREGAR MAIS
José Luiz Villamarim, sua formação é em Economia. Quando percebeu que sua vida profissional estava ligada a outra coisa?
Fiz vestibular para medicina. Não passei, graças a Deus, porque acho que ía dar um trabalho danado. Passei para Economia, mas, no fundo, meu desejo era fazer cinema. Isso estava tão distante… Morava em Belo Horizonte, filho de um dentista com uma historiadora, convivendo pouco com esse ambiente. Arrumei emprego na Fundação João Pinheiro, e lá havia um estúdio. Mesmo cursando Economia, comecei a fazer documentário, dramaturgia. Teve um boom de videomakers na época. Aqui no Rio tinha o Roberto Berliner e a Sandra Kogut. Daí vi a possibilidade de me virar para o cinema.
Mas fazer uma outra escolha no meio do caminho nem sempre é fácil.
É muito importante você gostar do que faz. Chutar o balde, trocar tudo. Para mim, vir para o Rio foi uma chutada de balde enorme. A gente passa, em média, sete horas dormindo, umas 14 trabalhando, sobram outras três para lazer, amor. A vida é uma conta pesada. O trabalho, na nossa sociedade moderna e capitalista, tem um tamanho… Necessariamente você tem que gostar do que faz, senão fica infeliz.
Você tem engatilhado uma produção na outra, sem grandes pausas. Isso abalou sua saúde.
Tive herpes zoster, fruto de um cansaço. Foi um pico de estresse. Já passei oito anos sem férias, juntando uma novela em cima da outra. Não me incomoda, gosto do que faço. Mas uma hora o corpo cobra. Isso reforçou a ideia de eleger mais os projetos nos quais quero trabalhar. E não fazer uma coisa na qual não acredite tanto. Da maneira que me envolvo, preciso de saúde.
“É preciso saber eleger projetos e escolher parceiros.”
É um workaholic?
Muito. E o trabalho em cinema e TV são trabalhos físicos. Gosto de um set onde está todo mundo concentrado. Tenho uma preguiça enorme de almoçar. Acho um desperdício. Às vezes você está no meio de uma cena e tem que parar tudo para dar almoço, para depois voltar para aquela concentração. Então, o set é esse lugar do trabalho. Mas é também o do prazer, das epifanias e das catarses.
Dos 25 anos de TV, você trabalhou em grande parte dirigindo novelas. Ultimamente tem dirigido as superséries da TV Globo. Acredita que encontrou uma linguagem com a qual gosta mais de ‘conversar’?
Quando me tornei diretor de núcleo, há uns cinco anos, tive o desejo de procurar projetos e oferecê-los à Globo. Reporto isso ao que aconteceu nos Estados Unidos (EUA) com as séries. Percebeu-se que a televisão tinha que dar uma chacoalhada. Correr um pouco atrás desse conteúdo que está aí, como se fosse uma nuvem. Isso provocou uma certa mexida na TV. O Manoel Martins (ex-diretor de Entretenimento da TV Globo) começou a fazer essas mudanças e o Schroder (diretor geral da emissora Carlos Henrique Schroder) as legitimou. É também preciso saber eleger projetos e escolher parceiros, como aconteceu com o George Moura, com quem fiz dois trabalhos seguidos. Quando você parte disso, já vai para o set acreditando naquilo. Uma série tem média 30 milhões de expectadores por episódio. “Amores Roubados” deu uns 35 milhões, “Justiça” uns 26 por episódio.
É uma grande responsabilidade, tanta gente vendo a história que você está contando…
O Bertolucci (o cineasta italiano Bernardo Bertolucci), quando fazia o “Último Imperador”, ao sair do camarim olhou para o set, na Praça Vermelha, e quando viu aquilo tudo falou: “Por que fui me meter nisso?” (risos). Tem horas que você tem que entender o tamanho daquilo que está fazendo. Não pode perder a noção da responsabilidade. É um trabalho industrial, há uma máquina ali, mas é preciso trazer o artesanal para dentro, até porque está lidando com dramas, algo inerente ao ser humano.
“A audiência mudou, e por isso a novela tem que mudar.”
Apesar de ter feito muitas novelas que agradaram ao público, como “O Rei do Gado”, acredita que foram as séries que te catapultaram para o sucesso?
A gente não trabalha com essa premissa. Evidente que as séries deram bom Ibope. E é uma linguagem mais fechada. Você tem mais controle sobre o que está fazendo. Tem começo, meio e fim. Você trabalha com menos páginas, pode quebrar um pouco o ritmo industrial. Tanto é que ao dirigir o “Rebu”, que é uma novela, pude fazer de outra maneira, levando um pouco da experiência que tive com séries como “O Canto da Sereia” e “Amores Roubados”. Consegui fazer só com uma, duas câmeras e tirei a famosa boca de cena. Foi bom ter mexido na gramática da televisão. É uma maneira de você se reinventar, não ficar técnico.
Você ganhou mais visibilidade com as séries sendo mais autoral?
Não vejo muita diferença das novelas. As que dirigi, como “O Rei do Gado”, “Mulheres Apaixonadas” e “Cabocla”, tinham uma autoralidade. Já “Bang Bang” foi um superfracasso, era pretenciosa. Tem o fato de a novela ter deixado de ser um hábito nacional. A audiência mudou, e por isso a novela tem que mudar. Na série você dirige sabendo o que vai ser toda a história. Está na sua mão. Hoje em dia, uma novela que as pessoas não gostam, rapidamente é rejeitada. Não é que a novela acabou. Novela boa, as pessoas veem. É que elas têm mais o que fazer e mudaram o modo de assistir TV.
O filme “Redemoinho”, sua primeira investida no cinema, foca no embate entre dois amigos de infância: um que permaneceu na cidadezinha natal e o outro que partiu para a cidade grande. Você também migrou. O diretor leva um pouco da sua história pessoal para uma obra?
Com certeza. O pertencimento, uma das questões da obra do Rufatto (o filme é baseado em Inferno Provisório, livro de Luiz Ruffato), me bateu profundamente. Além de ser mineiro como ele. Você vai lá no desenraizamento, na sua infância. Estava há muitos anos querendo fazer um filme. E quando li essa história, evidentemente a identificação foi natural. Jamais imaginei morar no Rio de Janeiro. Quando cheguei levei um susto. Fiquei uns três anos para me encontrar. Ao voltar para a minha casa, era a mesma coisa. Você fica sem um lugar.
“No fundo a gente é sozinho. Só tem que ter a inteireza de descobrir e trabalhar isso.”
Mas o pertencimento permanece sendo um questionamento?
Não muito mais. Estou muito feliz aqui. Adoro pertencer ao Rio de Janeiro e ter a alma mineira. Mas essa questão do pertencimento… “Redemoinho” tem uma cena, que é para mim a grande cena do filme, em que os personagens do Irandhir Santos, o Luzimar, e da Dira Paes, a Toninha, se encontram no final. Naquele dia, ela viveu uma das piores situações que uma mulher pode viver. E ele passou a limpo a vida inteira também vivendo situações horríveis. Mas quando se encontram, nem ela nem ele falam sobre isso. Essa é uma ‘conversa’ entre pertencimento e existência humana. No fundo a gente é sozinho. Só tem que ter a inteireza de descobrir e trabalhar isso.
Entender que somos sozinhos e morreremos sozinhos te angustia?
No momento, não. É bom lidar com o fato… E não faço apologia da solidão. Mas nós precisamos nos resolvermos. Não é no outro, não é na grama do vizinho que se resolve.
E como você acalma a sua angústia?
Uso no processo de trabalho. Mas sou, sim, uma pessoa agoniada. O Waltinho (Walter Carvalho, diretor de fotografia de “Redemoinho”) fala em ‘parceiros de agonias’. Tive a sorte de ter ele no projeto, e botar a minha agonia para fora. Mas sou uma pessoa leve, prefiro não complicar demais a vida. Comecei a fazer análise há uns oito anos. É bom para você se organizar um pouco. Às vezes tomo umas cervejas a mais para dar uma aliviada nessa agonia (risos).
Sua finitude te angustia?
Já me angustiei muito mais com isso. Mas hoje em dia o que mais me agonia é o tempo. Tudo está passando muito rápido. Tenho uma visão romântica da morte. Acho que pode ser uma coisa razoável, boa. A primeira perda que tive, de uma pessoa próxima, eu era muito novo, foi muito assustador. Talvez tenha tomado um tapa que me faz racionalizar a morte. Tenho a mania de tentar entender. E é ininteligível.
“Não gosto do malabarismo cênico. É muito fácil a gente aparecer. Isso é ruim. “
“Redemoinho” é econômico nos diálogos, não tem trilha sonora. Por que isso?
Tem só duas músicas: uma do Odair José, outra do Reginaldo Rossi. Que tocam no puteiro. Um puteiro sem música não dá (risos). Não gosto do malabarismo cênico. É muito fácil a gente aparecer. Isso é ruim. Acho que quem tem que estar na frente é a narrativa. Então, é uma busca incessante pela simplicidade. Que é dificílimo. Como em uma escultura, gosto de tirar excessos. Menos maquiagem, menos cabelo, qualquer coisa que faça a pessoa estar plena. É a busca, às vezes, do hiper-realismo. No “Redemoinho” e em “Justiça” isso fica muito evidente.
Na vida pessoal, quando que você é ‘mais’ e extrapola?
Enlouqueço no set. Como trabalho muito com plano-sequência, ninguém pode errar. O set tem uma catarse, uma energia. Eu ponho uma música e vou chamando o bicho… Não é neurótico nem nada. Os atores estão sempre agoniados e desejosos de enlouquecer, no bom sentido. Faço muito isso, e fico esgotado no fim.
Existe alguma diferença, do seu ponto de vista como diretor, entre trabalhar com atores ou atrizes?
Gosto de trabalhar com mulheres ao meu redor. Acho que são mais organizadas. E gosto de atores, homens ou mulheres, dispostos a enlouquecer. Não gosto do ator técnico. Porque na nossa profissão tem uma hora que a gente fica técnico facilmente. Acho que tem que ter técnica, mas entrando no set tem que esquecer dela. Gosto das pessoas que fizeram teatro, cinema e TV. Mas acho que teatro é o lugar do ator. A Adriana Esteves não fez muito teatro na vida, mas é uma atriz… Um negócio de doido. Uma atriz de uma entrega e de pura emoção.
Quando você reconhece que um ator não está totalmente preparado para o papel?
Graças a Deus aconteceu muito raramente. Gasto muito tempo fazendo casting. Acho que tem que ter a maior calma, por mais agoniado que o mundo seja. Você tem que parar e pensar: “É essa a pessoa mesmo?”. Às vezes você sabe de cara: “Esse personagem é essa figura, ele sabe fazer”. Tem outros que você tem que ir ao limite da dúvida, porque o miscasting pode acabar com uma história. Um ator que não foi muito bem escalado… leva, porque a história é muito boa. Mas um erro, que às vezes a gente comete, acaba com a narrativa de uma dramaturgia. Quando vi a Ísis Valverde num teste, pensei: “Essa menina vai ser um acontecimento”. Tem disso: um misto de intuição com tempo de trabalho.
E quando há um erro de escalação, o que se faz?
Não tenho errado muito. Mas se tiver errado uma escalação, tem que trocar. Raríssimas vezes aconteceu isso comigo, mas eu troquei. Você tem que ter uma coragem e trocar. Porque vai ser pior para a pessoa que você escalou e para você, para os dois.
“Uma das grandes funções do diretor é dar segurança às pessoas. Se você dá segurança para um ator, já ganhou 80% da interpretação.”
Como você faz para que seu humor, quando não está num bom dia, não influa no seu trabalho?
Detesto gente que traz problema para o set. Eu tento não levar. Não tenho muito mal humor. Só que a gente trabalha com seres humanos, então é a coisa que mais acontece. Uma das grandes funções do diretor é dar segurança às pessoas. Se você dá segurança para um ator, já ganhou 80% da interpretação. Então faço uma espécie de análise ali. Dependendo de quem for, vou lá e dou uma cuidadinha.
No cinema, o que te emociona a ponto de fazer chorar?
Atualmente estou chorando por qualquer coisinha (risos). Mas o que gosto é ver um bom filme, como se eu estivesse tendo contato com uma obra de arte. Para mim, isso é uma sensação plena. Aconteceu com “Apocalypse Now”, “Laranja Mecânica”, “O Filho de Saul”, “La Luna”, “Zabriskie Point” — esse filme mexeu comigo. Adoro chegar sozinho e sentar nas primeiras sessões, que são mais vazias.
E “Eles não usam Black-tie”, você viu?
Vi e faço uma citação ao filme, quando a Cássia Kis remexe os botões sobre a mesa (em “Eles não usam Black-tie”, a personagem de Fernanda Montenegro cata feijões). Acho o (Leon) Hirszman um cineasta incrível. Ali tem a questão da luta de classes. O “Redemoinho” não trabalha com a luta de classes, só com a questão operária. É um filme antológico. E os glaubers… Adoro essa ideia do (Martin) Scorcese, que revê Glauber (Rocha) para filmar.
Qual o seu ator/atriz-fetiche com quem ainda não trabalhou?
A Fernandona (Fernanda Montenegro). Sempre tive muita vontade de trabalhar com ela. A cena do feijão é uma das grandes cenas do cinema nacional. Aquilo é uma síntese. Você entende o filme inteiro num plano, numa marca felicíssima dela. Uma das coisas mais lindas. Se eu fizer uma cena daquela, estou feliz.
Entre os atores estrangeiros, alguém te chama atenção?
Marion Cotillard, Daniel Day Lewis. Mas quem me impressiona muito mesmo é a Julianne Moore.