Emicida

Emicida, rapper | por Heloisa Eterna | foto Isabela Kassow | Junho 2017

EMICIDA: RAPPER DIZ QUE É PROVA DE QUE O BRASIL PODE SER DIFERENTE, APESAR DA CEGUEIRA SELETIVA QUE EXISTE NO PAÍS

Emicida, pegando emprestado o mote de um dos seus primeiros trabalhos, a mixtape “Pra quem já mordeu um cachorro por comida, até que eu cheguei longe”, você acredita que tenha chegado mesmo longe?

Cheguei. Olhando agora, tinha uma presunção foda, ? Mas era com base em um sonho, nunca foi a respeito do alcance comercial da música, da popularidade de mídia. Venho de uma geração do hip-hop que compartilhava referências. Cresci ouvindo cantores de rap falando nomes de livros, de pensadores. Isso se torna menos popular nesse momento, o que acho uma coisa muito perigosa para uma cultura como a do hip-hop. Chegamos até aqui por ser essa cultura de compartilhamento. Em 2009, já me considerava um vencedor porque já tinha espalhado a mensagem. Aquilo já era um sonho para mim. Passei a viver da minha arte. Mas a frase da mixtape faz mais sentido hoje do que quando ela foi criada.

Tem uma garotada que sonha seguir o seu caminho, fazer sucesso. Teve um componente sorte?

Nada. Sou azarado. Não ganho uma rifa (risos). Acho que a gente é curioso e teimoso. Com base nisso, nasce a nossa construção. Vejo uma molecada que acredita que hoje é possível viver não só de música… O mais legal é que eles pegam a carreira do Emicida, o que eu disse nas músicas, e transformam numa metáfora para qualquer coisa da vida. Independentemente de qual seja o sonho. A coisa mais bacana, se a gente pode chamar isso de pós-Emicida para o brasileiro, é que o tema virou “possibilidade”. Antes, a gente ficava refletindo sobre a problemática que cercava a gente. Hoje, a gente insiste que a gente pode ser maior que esses problemas. Esse tipo de visão é fundamental para o Brasil.

Por falar em Brasil de hoje, como você anda vendo a política?

Fico muito angustiado. Faço parte da população que olha para política e não consegue enxergar esperança. Só que não acho bacana falar que a política é crime. Ela foi distorcida, e essa distorção é muito interessante para quem manda. A burguesia do Brasil está muito satisfeita com a população se afastando da política e acreditando que ali só tem bandido. E não concordo quando falam que não existe direita e esquerda. Ou que uma é igual a outra. Talvez no modus operandi dos maiores partidos as coisas se assemelhem. Mas na base, ideologicamente, sabemos que são campos distintos. Mesmo que às vezes possam cometer os mesmos erros, porque várias vezes são pensamentos que nasceram em lugares próximos, ?

Como assim?

Se for fazer uma avaliação de onde esses pensamentos se enraizaram e se popularizaram… A esquerda também tem uma origem burguesa no Brasil. Não é uma origem de favela. O Carlos Lyra (cantor e compositor de MPB) falava que uma diferença grande entre o pobre e o rico, com relação à política, é que o rico é politizado e o pobre é político. Porque o rico discorre sobre uma coisa que não passa embaixo do nariz dele, entendeu? O pobre vê a consequência direta da fome no dia a dia. Sabe que se não dividir o pão, uma pessoa vai morrer do lado da casa dele. Isso faz com que você reflita mais sobre compartilhar.

“Só o fato de eu estar aqui já prova que muita coisa pode ser diferente.”

Mas você é um otimista?

Sou um otimista incorrigível. Porque eu acredito, mano. Só o fato de eu estar aqui já prova que muita coisa pode ser diferente. A visão da sociedade brasileira com relação a alguém do meu perfil é a de um estereótipo muito pobre, tá ligado? E o fato de eu estar aqui já é uma resposta para muitas perguntas. E a minha existência sugere que outras perguntas precisam ser feitas.

Que outras perguntas?

O Brasil adora filantropo, entende o social como dar esmola para mendigo. Isso massageia o ego, tipo: “Estou ajudando os pobres, cumprindo minha obrigação cristã.” Esse mesmo Brasil criminaliza as pessoas que se perguntam: “Por que esse sistema gera tanta pobreza?”. Aí você vira o inimigo. Dez anos atrás, a contra-argumentação ao que eu falava era meio óbvia: “O sonho de todo pobre é ser rico”. Existia a ideia de que eu estava atacando o sistema, mas que iria parar quando entrasse nele. Hoje, o fato de eu ser bem-sucedido na música e manter essa reflexão significa que isso é maior do que a visão mesquinha de que as pessoas são cooptadas pelo sistema. Não abdicar desses valores me traz mais propriedade para entender que a gente vive uma desigualdade. O Brasil desenvolveu uma cegueira seletiva…

De que forma sua arte pode colaborar para mudar isso?

A consequência política da minha música é as pessoas entenderem que são maiores do que barreiras que são impostas a elas. Tudo começa quando você desacredita do seu poder de mudança, da sua força de criação, da sua capacidade de construção. Tem muita gente nas favelas que desistiu. E começa a funcionar como uma engrenagem do sistema, como se não tivesse força para a mudança, como se seu voto não fosse válido. Mas o hip-hop brasileiro tem um viés político que é único no mundo, e quando senta à mesa traz um grupo de valores para a conversa. Não temos que abdicar disso só porque a pauta da política tem sido demonizada. Ao contrário. Por mais barulhenta que a ignorância seja, vai chegar um momento em que ela vai ruir, e a verdade vai manter sua solidez.

“Tivemos um Governo favorável a pautas de esquerda, mas não um Governo de esquerda.”

O Brasil teve um Governo de esquerda que se manteve no poder por 13 anos. Acha que ele não conseguiu levar consciência política a essas pessoas?

Tivemos um Governo favorável a pautas de esquerda, mas não um Governo de esquerda. É como faço a avaliação pós-PT. Nunca pensei em faculdade antes do Lula (o ex-presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva), não achava que aquilo era para nós. Mas o que a gente vê hoje é que as forças conservadoras têm muito mais poder dentro da política do que as forças progressistas. O Brasil é um país conservador. É preciso criar pontes, estabelecer um diálogo. Esse é o ponto crucial de hoje. Fazer a comunicação acontecer para que as pessoas entendam a similaridade delas. Se a gente não pegar acertos como o Bolsa Família, uma conquista gigante reproduzida em outros países, lapidar e continuar, para que esse país de miséria fique cada vez mais distante, a gente vai estar correndo numa esteira.

Nas recentes manifestações de rua, a representatividade da favela não é percebida…

Na favela, o policial usa bala de verdade, não usa de borracha. A contenção de protesto no subúrbio é completamente diferente da contenção em Ipanema. Uma jornalista que toma uma bala de borracha na cara vira notícia na capa dos principais veículos, enquanto cinco moleques fuzilados em Costa Barros (Zona Norte do Rio de Janeiro) viram notinha de rodapé. É por isso que a favela não bota sua insatisfação na pauta e pula dentro dos protestos, como as pessoas de classe média fazem sugerindo uma reflexão. Como diz um amigo, o melhor exame de DNA é o cacetete de um policial. Ele sabe em quem ele bate. Ele sabe quem é o preto ali.

“Não se fala abertamente sobre sexo, drogas e racismo.”

A música “Dedo na ferida” fala sobre comunidades de áreas pobres desocupadas, vítimas de violência policial. Até que ponto uma música pode ter força para mudar o estado das coisas?

A pauta da desocupação violenta e a reforma agrária, em geral, não têm destaque na mídia hegemônica. Quando a gente fez essa música, a gente foi para capa. Era o que eu queria. Essa música não é comercial. É de conscientização. Era muito importante usar o tamanho que o Emicida tem hoje para fazer as pessoas olharem para esse tema. O Brasil não vai avançar se não se falar sobre terra. O cidadão afro-descendente ou pobre nunca teve acesso à terra. Quem tem é o latifundiário, o grileiro. Acho que a gente tem que falar sobre agricultura familiar… Não estou demonizado o agronegócio. Acho essa lógica maniqueísta pobre. As duas coisas devem ter iguais direitos de existir. Só que uma, a dos pobres, é extremamente criminalizada, e a outra, por ter um potencial de investimento gigantesco, consegue dizer para a sociedade que ela é o positivo e que os outros sao os feios, os inimigos.

O brasileiro costuma dizer que não é um povo preconceituoso. Você concorda?

Xaveco. De jeito nenhum. Isso é piada. Veja o Facebook, que é um tambor ao contrário. Uma rede social que às vezes põe para fora só o pior das pessoas. O ponto positivo de ver tanta ideia furada andando e ganhando corpo, é a gente olhar paro o Brasil como ele é. A cordialidade do brasileiro, da democracia racial… Como é que se chama o tiozinho lá, o de “Casa Grande e Senzala”? O Gilberto Freyre. Não é preciso esforço nenhum para desconstruir essa ideia dele. A partir do momento que uma escola coloca os alunos para brincar de ser pobre… (Estudantes da Instituição Evangélica de Novo Hamburgo, no Rio Grande do Sul, deram festa onde se vestiam de acordo com slogan “Se nada der certo”). Ou seja, se nada der certo a profissão é atendente, vendedor… O Brasil tem essa sociedade de castas. Mas por que chegamos nesse lugar? Por causa do silêncio. Não se fala abertamente sobre sexo, drogas e racismo. O silêncio não é uma forma de combate, mas de criar espaço para isso ir se enraizando.

“Para além da brutalidade que cerca a favela, ainda tem a reflexão sobre o tempo.”

Em 2011, no Video Music Brasil, ao faturar os prêmios de clipe e artista do ano você brincou: “Estamos promovendo uma reforma agrária na música brasileira”. (Por ter desbancado nomes como NX Zero, Marcelo Camelo entre outros). No campo político, quais são as reformas necessárias aqui no Brasil?

Jesus! (risos). Se não falarmos de uma reforma política profunda, a gente vai continuar correndo nessa esteira. Tem tantas crises para gente combater no Brasil, mas essa é a primeira. E ela saiu da pauta. Teria que ter uma reforma dos meios de comunicação, na forma como a nossa mídia influencia a sociedade. É preciso ter um contrapeso. A mídia é uma concessão pública, mas serve ao setor privado. É muito problemático, muito sério. O brasileiro precisa falar e entender sobre isso.

O delegado da Polícia Civil Orlando Zaccone, doutor em Ciência Política, é a favor da legalização total de todas as drogas. O que você pensa a respeito?

Tendo a concordar. Mas não sou um especialista no assunto. O que eu entendo é que, assim como essa questão do encarceramento em massa, tanto nos Estados Unidos quanto aqui, a guerra às drogas visa manter projeto de criminalizar pretos e pobres. Encher a cadeia para esse tipo de gente virar mão de obra barata para quem vai se apropriar dela. A guerra às drogas é uma guerra à pobreza. O que o Doria fez em São Paulo (o prefeito João Doria propôs a hospitalização compulsória de dependentes de crack que moram nas ruas) é superficial. Dá notícia, mas não dá resultado. Legalizar as drogas ia fazer a gente olhar para a situação como ela realmente é. E criminalizar o tráfico. Minha base para falar sobre isso é 100% empírica. O que sei é que um moleque lá do Fontalis (Jardim Fontalis, comunidade da Zona Norte de São Paulo) não tem o mesmo tratamento de um moleque de Ipanema que roda com 500 gramas de cocaína.

O Brasil que a gente sonha nunca aparece?

O Brasil que eu sonho, aparece. Ele só não ganha corpo (risos).  O Brasil criminaliza o pobre. Mas mano… Eu falo na música “Triunfo” que, se a maioria de nós partisse para o arrebento, a porra do Congresso já estava em chamas faz tempo. Isso é uma metáfora. Os ônibus, os metrôs estão cheios às quatro horas da manhã de gente que acredita, honesta e trabalhadora. Por falta de tempo, talvez essa gente não consiga fazer uma reflexão mais ampla sobre a sociedade. É um luxo ter tempo. Para além da brutalidade que cerca a favela, ainda tem a reflexão sobre o tempo.

“Faço cara de mau porque meu emprego pede.”

Você tem um sonho que ainda não realizou?

Tenho um desejo. A minha parada mesmo é… Sou nerd.  Só queria abrir umas bibliotecas. Não é para que as pessoas leiam um livro e concordem comigo. Não gosto de quem fica concordando comigo. Acho que a gente evolui no conflito. Ou a gente vai convencer, ou vai ser convencido. Mas para isso, mano, tem que baixar as armas.

A religião é também uma questão política. Qual a sua?

Não tenho uma oficial. Vou pegando emprestada. Dependendo da tremedeira no avião, vou pegando um santo a mais (risos). Tenho relação próxima com o candomblé, uma admiração grande pelo budismo. Me identifico com as duas. Mas já li a Bíblia muitas vezes e conheço pessoas evangélicas muito interessantes. O que me frustra é que às vezes tem a criminalização da religião do outro. É uma parada que me deixa decepcionado, principalmente com a rapaziada do cristianismo, do monoteísmo. Esse pessoal que tem um deus só. O outro é o inimigo, o diabo. Na África não tem esse maniqueísmo do bem e do mal.

Você é feliz?

Pra caralho. Faço cara de mau porque meu emprego pede (risos). Tenho minha filha, que é um oásis para mim. As outras crianças com quem tenho contato são um oásis. É mágico. Talvez por isso eu seja tão esperançoso. E trabalho num lugar que amo, faço uma música que gosto de fazer, tenho contato com muita gente bacana, tenho a oportunidade de viajar e conhecer o mundo. Achei que não ía nem sair do meu bairro. Só falta a Oceania, mas nem tenho essa vontade de conhecer porque lá está cheio de bicho venenoso. Tem cobra até na asa de avião.

Muito aprendizado nessas viagens?

O Japão foi um lugar que me ensinou muito. Como o valor da servidão sem que a pessoa que te serve tenha um valor inferior ao seu. A gentileza… A África me falou de humanidade, quando conheci a Ubuntu (filosofia africana que trata da importância das alianças e do relacionamento entre as pessoas). Ubuntu é isso: eu sou igual a você, que é reflexo do ambiente que te cerca. Tento viver de acordo com isso. Mas a real, real mesmo sobre o Emicida é a seguinte: estou tentando ser um ser humano melhor, e no meio disso sai música.

“Viver no Brasil é inspirador, o caos é inspirador.”

Ao compor, quando que você identifica que encontrou a rima perfeita?

Viajo numa coisa matemática, de proporção das sílabas e sonoridades. Muitas vezes passo semanas resmungando a mesma célula rítmica. Isso sempre vem em sincronia com uma história, que é o ponto de partida. É por isso também que luto pela liberdade de se poder contar todas as histórias. Não apenas as que contêm sofrimento. Tem um vício na perspectiva de muita gente que tenta acorrentar o discurso de pessoas como eu, principalmente quando o artista é de origem pobre e pele escura. Esse vicio é perigoso, tende a achar que a nossa arte só é autêntica se tiver dor, lágrimas e sofrimento dos nossos como ponto recorrente. Isso é racista pra caralho. Por isso gosto de falar de liberdade, do que eu quiser, dores e delícias. No meio dessa mistura, priorizo a história e o formato matemático das sílabas, a proporção das palavras. Fico viajando na interpretação até achar que aquilo é preciso e profundo como penso que as linhas precisam ser.

O que é mais inspirador para a sua música?

Viver no Brasil é inspirador, o caos é inspirador. Muita gente que admiro se inspirou em situações que a olhos menos cuidadosos não gerariam poesia. A realidade desta parte do planeta, que chamam de Terceiro Mundo, possui mazelas que nos obrigam a tentar ver mais nas coisas, para assim nascer alguma esperança e motivação para seguir em frente. Esse flerte com o invisível, com o misterioso, resulta em inspiração. Acho os trabalhadores do Brasil inspiradores, as mulheres, as histórias não-oficiais, a história preta, a história indígena. Muitas vozes no Brasil gritam sem serem ouvidas. Minha forma de me manter vivo e com alguma sanidade foi fazendo sempre esse exercício de ouvir os gritos silenciosos dos arredores por onde passo.

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