BRUNA LINZMEYER: AUTODENOMINAR-SE LÉSBICA É, SOBRETUDO, UMA POSIÇÃO POLÍTICA
Este ano você estreia nos filmes “O Banquete”, “O Grande Circo Místico” e “O que resta”. É no cinema que se sente mais realizada?
Depende da personagem e dos encontros humanos de cada trabalho. Às vezes isso se dá na televisão, às vezes no cinema. Me encantam as coisas que são muito diferentes nessas duas linguagens. Na televisão, tipo o grande público, andar na rua e as pessoas conversarem sobre o que está acontecendo na novela, o alcance que essa coisa tem. Isso é muito encantador e assustador. Já no cinema, essa abertura para falar de coisas específicas, aprofundadas, com um pouco mais de ambiguidade.
Se sente mais segura no cinema?
Me sinto mais segura no set, qualquer set. Obviamente, muito insegura também, com medo, sempre aquele: “Fudeu, não vou conseguir fazer”. Minha formação é com câmera, é de set, não venho do teatro. Adoro o processo: o texto, a filmagem, depois ver o filme pronto.
Existe uma atriz em quem você se inspira ou que você goste muito do jeito de atuar?
Uma pessoa tem me atravessado muito recentemente. A Grace Passô (atriz, diretora e dramaturga mineira). Penso: “Caceta! Como é que se faz isso?”. Acho o trabalho dela muito foda. É alguém que tem me encantado.
Você vive quebrando padrões. Já disse que não deseja ser mãe, exibe a virilha e as axilas sem depilação… Gosta de testar a reação do público, de provocar?
Sempre fui considerada uma pessoa que fura o espaço comum, quebra as regras desde criança. Ter pelos e não querer ser mãe não é para provocar. É realmente quem sou. Me surpreende, incomoda, que isso seja uma questão para os outros, uma provocação. A mulher não precisa ser mãe para ser mulher. E uma mulher adulta tem pelos. Então, toda a questão dos pelos me parece pedofilia, porque quem não tem pelos são crianças, são meninas. Por que a gente tem essa ideia de que é sexy mulher sem pelos? Outra questão é a da sujeira. Fomos retiradas dos nossos corpos desde sempre, mas principalmente desde a Idade Média, quando nós mulheres éramos consideradas bruxas por existirmos, por termos pelos, por sermos lésbicas. E por contestarmos o capitalismo, de falarmos: “Não quero trabalhar 12 horas por dia, não quero ser enfiada para dentro de casa para ser mãe”.
“Incomoda ainda mais quando uma mulher dentro dos padrões de beleza é lésbica e tem pelos.”
Para ter seus direitos reconhecidos, a mulher já rasgou sutiã em praça pública. Hoje, fala-se em um “novo feminismo”. Na sua geração, como você identifica isso?
Não é novo. É o feminismo de sempre, que existe desde as mulheres dos anos 60/80, a chamada primeira onda. Esse feminismo que as pessoas estão lendo como novo é o feminismo que está cabendo às mulheres da nossa época. Enquanto uma mulher branca precisava lutar para trabalhar, e uma mulher preta precisava lutar para existir, hoje em dia eu preciso lutar para ser lésbica, para ter trabalho em publicidade, na televisão e para ter pelos. Isso é o que cabe a mim, mulher da minha estrutura física, do meu biotipo. Porque tem isso, né? Sou marcada como uma mulher bonita, dentro dos padrões de beleza. Incomoda ainda mais quando uma mulher dentro desses padrões é lésbica e tem pelos. Há uma enorme invisibilidade da mulher aí nesse lugar. Nasci no interior, em cidade pequena, numa família muito simples. Virei atriz de novela, famosa. Tem umas camadas muito loucas na minha trajetória. Fico feliz em saber que se isso incomoda, eu posso incomodar.
É também um ato de coragem, não? Ao contrário de gerações anteriores, a geração que hoje está nos seus 20 anos não aceita ser encaixotada num determinado rótulo que determine sua opção sexual, como diz o Jesuíta Barbosa em entrevista aqui.
O feminismo traz isso como uma puta libertação. Você pode ser qualquer coisa. Você é mulher e é homem. A mulher traz essa pauta inclusive para os homens. Essa geração que está se apaixonando por pessoas, a não-binariedade, a androginia, tudo isso é muito potente. Mas existe em pequenas bolhas. Em cidades grandes, entre pessoas que têm mais dinheiro e oportunidade de estudar. Há diferenças tanto nas periferias quanto no interior do Brasil. Não dá para a gente falar agora: “Queremos um mundo não-binário”. É isso que eu quero, realmente esse é meu objetivo. Mas o mundo não é só não-binário. As pessoas são muito bem separadas em homens e mulheres. Primeiro a gente precisa ter igualdade de gênero para avançar para a não-binariedade. Acho válido as pessoas que se identificam como não-binárias ou como andróginas e que estão nessa luta. É importante a gente ter todas essas lutas. Me considerar mulher é uma luta, porque o mundo é muito desigual na questão de gêneros.
“Sempre ouvi que não ia conseguir pagar minhas contas.”
(Sobre o risco de assumir publicamente a orientação sexual)
Você vê importância política na palavra “lésbica”?
Quando souberam que eu namorava uma mulher, a mídia me tratava como gay. Pensei: “Será que sou gay? O que eu sou?”. Não tinha exatamente parado para pensar nisso. Não era militante desde criança, essas palavras não estavam na minha memória, na minha trajetória. Aí comecei a pensar, a estudar, a ler um pouco sobre isso, e falei: “Não. Acho que não sou gay. Se eu sou alguma coisa que vocês estão falando aí, sou lésbica”. Entendi também a importância da palavra lésbica, de mulheres que se relacionam com mulheres usarem essa palavra. Porque é uma questão de luta. Dentro da comunidade LGBT e Queer ainda tem uma interseccionalidade que é: “Eu sou gay-lésbica” e “Eu sou mulher”. Essa interseccionaldidade dentro da comunidade deixa as lésbicas e, imagino, não sei, talvez os homens trans, também nesse lugar. Os homens nascidos homens, dentro dessa comunidade patriarcal e machista em que a gente vive, talvez tenham mais oportunidades. Então, eu me digo uma mulher lésbica como um ato político, uma maneira de falar sobre isso. Porque sei que a palavra lésbica ainda dá um negócio no pescoço das pessoas lá no fundo da plateia quando falo. A palavra gay já é um pouco mais aceita. Também está relacionada ao homem, não sei. São coisas que sinto no meu corpo. Mas não sou só lésbica. Entendi que preciso estar numa caixinha, que preciso me colocar às vezes numa caixinha para poder falar sobre ela. Mas se eu for falar sobre uma caixinha que de fato me identifico mais, sou panromântica e pansexual. Me interesso por todas as pessoas. Não só sexualmente, como me apaixono por todas as pessoas. Mas o ato de me dizer uma mulher lésbica, é um ato de luta.
Nunca teve receio de perder contratos publicitários ou papéis na TV por se assumir como lésbica?
Sempre ouvi que não ia conseguir pagar minhas contas. Quando me apaixonei de repente, falei: “Uau, essa pessoa é uma mulher”. Isso não era tão encaixotado na minha cabeça. Sempre beijei a Kitty (a cineasta Kitty Féo), que foi minha primeira namorada, em público, na praia, nos eventos em que a gente estava, entre nossos amigos, não-amigos, agia naturalmente. A partir disso começaram alguns questionamentos das pessoas que me amam. Não era uma coisa de: “Fique dentro do armário, não saia”. E sim de: “Como será que tá o mundo aí fora? Como isso vai bater na sua vida profissional?”. Minha família não tem dinheiro para me sustentar. Desde meus 15 anos pago minhas contas. Esse foi um cuidado das pessoas que me amavam perante um mundo opressor que a gente vive.
“Ser lésbica é motivo de exclusão. Se você quer falar sobre isso, aproveita e dá emprego para uma lésbica.”
Tornar isso público foi opcional?
Alguém me invadiu na época. Foi uma invasão. Não cheguei no jornal e disse: “Quero falar, eu sou lésbica”. Foi um susto. Poderia dizer que era mentira. Mas não posso, porque se não pagar minhas contas, vou morrer de câncer. Como é que vou viver escondendo uma coisa que eu sou? Eu sou essa pessoa. E não tem nada de errado com isso. Pensei: “Vamos lá, vamos com o coração”. Perdi contratos de publicidade. Mas outras coisas chegaram, inclusive contratos de publicidade por causa disso. No cinema. Chegaram mensagens maravilhosas. E muitas lésbicas me param na rua para me abraçar. E meu coração está tranquilo, meu corpo pisando um passo de cada vez. Estou certa, feliz, contente. Acho que é isso que é mais lindo. Sento na praia e beijo minha namorada. Não vou deixar de fazer nada porque alguém acha que isso é um problema. Se você acha que isso é um problema, amor, vai lidar com o seu problema!
Na entrevista com Jesuíta, ele fala da necessidade de dar visibilidade às minorias nas produções audiovisuais de forma que elas não fiquem sempre na condição de minoria.
Concordo. Penso que uma lésbica pode fazer qualquer papel enquanto atriz, e não acho que um papel de lésbica tem que ser feito por uma lésbica. Uma atriz está aí para fazer qualquer coisa. Obviamente, quando se fala de minorias políticas a gente precisa tomar cuidado para que essas pessoas sejam parte do que está sendo falado. Então, você não vai fazer um filme sobre lésbica sem lésbica. Uma atriz não precisa ser lésbica, mas uma lésbica precisa trabalhar com você. Ser lésbica é motivo de exclusão. Se você quer falar sobre isso, aproveita e dá emprego para uma lésbica.
Para o bem ou para o mal, o que mudou na sua vida?
De ruim, nada. Só coisa boa. Tenho mais pertencimento. Ando em qualquer lugar do mundo e quando vejo uma lésbica atravessando a rua, a gente cruza o olhar e sabe que a gente pertence a um lugar, que a gente está na mesma luta. Mais recentemente, isso tem acontecido com qualquer mulher, digo, qualquer feminista. E isso é lindo. Isso dá um sono melhor, uma alegria melhor.
“A heterossexualidade é compulsória, obrigatória. Você nasce heterossexual. É uma imposição social.”
Acredita que um dia as pessoas vão olhar com indiferença para duas pessoas do mesmo sexo que se relacionam amorosamente?
Acho. É para isso que faço o que faço.
Não acha que facilitaria mais a aceitação ou o entendimento se pessoas famosas nas artes, na política, etc saíssem do armário?
Se eu tivesse tido referências e representatividade lésbica na minha adolescência, teria sido lésbica muito antes. Perdi milhões de coisas porque isso não era uma possibilidade. A heterossexualidade é compulsória, obrigatória. Você nasce heterossexual. É uma imposição social. Se eu puder fazer por uma menina o que uma atriz famosa poderia ter feito por mim, tá show, tá valendo.
A educação do ser humano, em geral, em casa ou na escola, costuma ser sexista, racista e discriminatória. De que forma uma pessoa, individualmente, pode mudar esse cenário?
Tão simples. A gente precisa de uma certa educação para estar atento a tudo que está acontecendo. Do contrário, você vai normalizando as coisas o tempo todo. Se a gente olhar para uma mulher com a consciência política do que é uma mulher no mundo, de como essa construção da mulher é opressora pelo patriarcado, pelo capitalismo, se você bota esses “óculos feministas” tudo muda.
Recentemente, campanhas nas redes sociais como #MexeuComUmaMexeuComTodas, aqui no Brasil, e #MeToo, nos EUA, foram iniciadas por mulheres assediadas ou que se identificavam com histórias contadas por elas. Acha que mudou alguma coisa de lá para cá?
Muito. Essas duas campanhas têm dimensões muito grandes. Mas como estas, tem outras milhões acontecendo. Recentemente, no mundo da poesia, no das artes plásticas acompanhei três, outras no cinema. Tudo isso continua reverberando. Isso é maravilhoso. Existe um pacto sendo feito entre produtoras de cinema e de publicidade no eixo Rio-São Paulo. Isso está resultando em um contrato de responsabilidade, onde se fala o que é assédio, o qual quem é contratado deve assinar. Tem coisas grandes repercutindo a partir desses movimentos. E tem as coisas pequenas, que é falar sobre assédio. Falar e as pessoas ouvirem, porque a mulher sempre falou mas nunca foi legitimada.
Já foi asediada?
Todas as semanas, quase todos dias. Na rua, no trabalho.
Você reage? Ou o medo te paralisa?
Na maioria das vezes não consigo fazer nada. É difícil reagir porque você está vulnerável, pode ser ainda mais violentada. Conto nos dedos as vezes em que consegui reagir, de olhar em volta e perceber que se reagisse nada ia acontecer. Entendo quem é assediada e não consegue reagir. É muita vergonha, é muito medo.
Ao contrário do ditado “Beleza põe mesa”, a sua já dificultou alguma coisa?
(Risos). Falei para uma diretora, amiga minha, a Juliana Antunes, que um filme que ela está para fazer é foda, que queria estar nele. Ela me disse que fazia filme com gente normal, que eu sou bonita, tenho a pele boa e dentes brancos. Isso é uma grande questão. Quando você não tem isso, essa é uma questão para a televisão. Mas no cinema, tenho pouquíssimos papéis porque estou dentro deste padrão de beleza. O que eu faço? Vou para os papéis que me cabem. De fato, sou branca, tenho olho azul e estou dentro de todos os padrões de beleza. Tenho que fazer coisas com isso. São boas às vezes, não tão boas às vezes.
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