ORLANDO ZACCONE: DELEGADO, HARE KRISHNA E A FAVOR DA LEGALIZAÇÃO TOTAL DAS DROGAS
Orlando Zaccone, você foi responsável pelo inquérito do caso Amarildo, e desmontou a versão de que o assistente de pedreiro seria traficante. O que foi decisivo para que a farsa fosse desmontada? (Amarildo desapareceu após ser levado por policiais militares para a base de uma Unidade de Polícia Pacificadora, a UPP, na Rocinha, Rio de Janeiro).
O inquérito foi feito pela Divisão de Homicídios. Fui responsável pela investigação preliminar, porque o registro foi de desaparecimento. Vi que havia possível participação de policiais militares e que poderia ter sido homicídio. E encaminhei o relatório para a Divisão. Mas havia outro inquérito que investigava uma associação ao tráfico onde eu era titular, na Gávea, também a delegacia da área da Rocinha. Esse inquérito não estava na minha responsabilidade, mas na do delegado assistente. Nele, estava sendo construído que o Amarildo era traficante e que tinha sido morto pelo tráfico. Como delegado titular, observei que havia irregularidades no inquérito. Era uma ficção, uma fraude, na tentativa de construir que o desaparecido era criminoso. O que, no Brasil, infelizmente, justifica o desaparecimento. A desqualificação da vítima é sempre um artifício para legitimar ações violentas do Estado. Foi assim na ditadura. E estava acontecendo naquele caso.
Na sua tese de doutorado em Ciência Política, você defendeu que no Brasil o criminoso identificado como inimigo perde o estatuto da cidadania. E que se Amarildo fosse identificado como traficante, a forma como morreu passaria a não ter mais importância…
A legitimidade das mortes praticadas pela polícia no Brasil se dá pela condição do morto. Isso é preocupante e nos remete a situações históricas muito perigosas. O nazismo, por exemplo, legitimava a morte de milhões de pessoas pela sua condição de vida. No Brasil, toda legitimidade das mortes praticadas pela polícia se dá dentro do estado de direito, com promotores de Justiça, magistrados legitimando essas mortes no debate sobre quem morreu. O que está em jogo não é a violência praticada pela polícia, mas a quem ela é praticada. Aí a gente fica discutindo: “Era pedreiro ou era traficante?” Ou seja, o Estado brasileiro está dizendo que algumas pessoas podem ser exterminadas e outras não. Isso nos remete a esse campo perigoso que é o fascismo.
E por que você interveio?
Achei que deveria mostrar que aquilo era uma construção. Não havia nenhum indício de que Amarildo era traficante. Ele morava do lado de uma boca de fumo, mas isso não o transforma em traficante. Infelizmente, no Brasil todas as pessoas que moram onde o varejo das drogas opera, são consideradas inimigas. O olhar para a favela é como se todos que moram ali são traficantes. E as pessoas não refletem. O que faz com que essa violência aconteça é a proibição das drogas.
“As bruxas foram inimigas ônticas, pela própria condição de ser mulher.”
Se a farsa não tivesse sido desmontada…
A divisão de homicídios prosseguiu com as investigações, e, infelizmente, chegou à conclusão da participação dos policiais. Digo infelizmente, porque a polícia também é jogada nessa grande tragédia. Provavelmente, se Amarildo fosse traficante, esses policiais receberiam medalha de honra ao mérito, seriam promovidos. Porque matar traficante no Brasil é ato de bravura. Mas se este traficante não é construído, aí esses policiais vão presos. É uma grande tragédia.
Que figura é essa, a do traficante?
O traficante é uma grande construção. A gente tem que fazer um debate político sobre a necessidade de desconstruir essa figura. Do ponto de vista daqueles que hoje militam pela legalização das drogas, só mesmo regulamentando a produção, o comércio e o consumo para que essa figura desapareça. O traficante é um inimigo ôntico. Você tem o inimigo de Estado, que é um inimigo momentâneo. Mas o inimigo ôntico é o inimigo por natureza, a quem, historicamente, não se permite nenhum tipo de negociação. As bruxas foram inimigas ônticas, pela própria condição de ser mulher, sofrendo um processo de extermínio absurdo. No caso do nazismo, os judeus.
Dentro dessa categoria “traficante” há um sem números de pessoas…
São uma categoria imensa, que não se restringe só a pessoas armadas. Você tem garotos que avisam a chegada da polícia; mulheres que são mulas, carregando drogas de um lado a outro da cidade. E você acaba vendo toda essa categoria como extremamente violenta, perigosa. Então, há uma quantidade imensa de pessoas que estão sendo mortas justamente por causa da construção desse inimigo.
“O Estado nunca vai dizer que promove uma política de extermínio, mas uma política pública.”
Seriam estes, delinquentes?
O delinquente é aquele que sofre todo o processo de violência do sistema punitivo. Então nem todo criminoso é delinquente. Nem todo criminoso vai sofrer essa violência. Não se fala de extermínio de crimes contra a ordem econômica, extermínio de crimes de desvios de obra pública. Aí todo mundo quer o devido processo legal. O tráfico de drogas, os crimes praticados pelas camadas populares são totalmente afastados de qualquer garantia de defesa ou, no caso do tráfico, da própria vida. A gente fala: “A polícia mata muito”. Mata, mas não mata sozinha. Mata com o aval do poder jurídico, que arquiva essas investigações; com o aval do discurso midiático, que está sempre no dia a dia chamando a população para esse ódio a determinados grupos.
Então, bandido bom não é bandido morto?
Não deve ser, né? Quando você diz que bandido bom é bandido morto, você está aumentando o número de bandidos. Porque quem mata sem ter autorização legal, está praticando crime. Foi o que aconteceu no caso Amarildo. É um discurso de quem joga isso nas mãos da polícia. E é uma grande cilada. Quando os policiais acreditam que são heróis, capazes de exercer esse poder de decisão da vida e da morte por um clamor social, ele se coloca numa zona muito vulnerável. De uma hora para outra, aquele morto pode ser reclamado. E se for, dessa mesma sociedade, que pediu para que esses policiais ajam assim, não vai aparecer ninguém. O policial fica sozinho. É punido e construído como monstro também. Isso é uma estratégia. O Estado individualiza a culpa no policial, dizendo que ele desviou da sua função. O Estado nunca vai dizer que promove uma política de extermínio, mas uma política pública.
Depois do caso Amarildo, você saiu da delegacia de um bairro de classe média alta do Rio e foi transferido para uma delegacia em Ricardo de Albuquerque, subúrbio da cidade, onde a vida de mais glamour passa distante de seus moradores. Foi um ato de punição?
Não posso ver como punição, ainda que seja. Porque se eu considerar punição, vou estar dizendo que é um desprestígio a atividade policial ser exercida em Ricardo de Albuquerque. Ao contrário. Acho que a população de lá tem o mesmo direito de ter uma boa investigação policial tanto quanto a população da Gávea. Se foi ou não punição, como diria Nelson Rodrigues: “Azar dos fatos”. Eu, politicamente, não posso enxergar isso como uma punição.
“As pessoas nas favelas acharam que a UPP traria a paz tão sonhada. Mas a que custo?”
As UPPs foram uma bandeira do ex-governador Sergio Cabral no Rio, hoje preso e denunciado por vários crimes. Acredita que tenha sido uma grande falácia?
A falácia começa com um projeto técnico, neutro, apolítico. Não existe política de segurança que não seja política. A implantação da UPP contemplava todo o projeto político daquele governo. Que incluía a realização de grandes eventos e tudo que resultou na prisão do ex-governador. Isso é importante de se colocar, porque vejo muita gente com saudade da UPP, como se fosse algo separado de tudo que aconteceu naquele governo. O projeto entrou naquele momento trazido por experiências internacionais. O ex-governador Cabral foi à Colômbia, estudar o projeto Colômbia, que teve aporte financeiro dos Estados Unidos que visava atacar o controle que alguns grupos exerciam em regimes pobres. Entraram nesses locais com urbanização, saneamento básico. Antes disso, caminhões com corpos saíram de Bogotá. Falam da mudança urbanística, mas pouco da violência que foi praticada para que o projeto fosse realizado.
Mas onde esses dois projetos são similares?
O projeto da UPP contempla a militarização da segurança pública como forma de controle social de áreas pobres. O Exército brasileiro participa de uma experiência semelhante no Haiti. É um projeto transnacional que chegou ao Rio de janeiro através da UPP. O urbanista Mike Davis (autor norte-americano de Planeta Favela) conta sobre a discussão, nos Estados Unidos dos anos 1970, de como seria a forma de controle social do planeta num momento em que metade da população estaria vivendo num bolsão de pobreza. E a ideia seria a ocupação militar de áreas pobres.
A polícia, então, não deveria estar na favela?
A grande crítica que podemos fazer à UPP não é a presença da polícia na favela. Você dizer que a polícia não deve estar em algum lugar não é algo que se contemple, é irracional. O problema todo é entregar o governo da favela para o comandante da policia militar, que acaba decidindo sobre horário de lazer, funcionamento do comércio e sobre a associação entre as pessoas. É um estado policial instalado dentro das favelas. E que muitas vezes é visto como positivo pelo próprio morador. Não existe nenhuma ditadura que comece sem apoio popular. Quando há o discurso da ordem no caos, em princípio ele é benquisto. As pessoas nas favelas acharam que a UPP traria a paz tão sonhada. Mas a que custo? Mas não foi por isso que o projeto acabou. Acabou porque foi construído dentro de um programa político que quando se desfez, a UPP se desfez junto.
“Se o policial se construir como trabalhador, ele vai se identificar com a luta dos outros trabalhadores.”
O que é o movimento policiais antifascismo?
Surgiu de um convite de policiais civis de Salvador para que eu falasse em um evento. Lá tem um coletivo de policiais civis, militares, federais e guardas municipais com uma visão mais progressista. Eles querem construir um projeto de segurança pública democrático para o Brasil, com questões importantes. Como a desmilitarização da segurança pública, a legalização das drogas e a construção do policial como um trabalhador.
O policial não é visto como trabalhador?
Hoje temos dois estereótipos sobre o policial que são muito prejudiciais. Um à esquerda e outro à direita. O da esquerda: o policial é bandido, violento e corrupto. E o estereótipo construído pela direita, que é o policial herói. Esse é pior ainda. É um policial que tem que se sacrificar na luta do bem contra o mal, independentemente de salário, de reconhecimento social. Para mim, o policial nem é bandido nem herói. Somos trabalhadores. Uma das missões dos policiais antifascismo é justamente dialogar com a sociedade nesse sentido: são trabalhadores e precisam ter reconhecimento. Se o policial se construir como trabalhador, ele vai se identificar com a luta dos outros trabalhadores. É impressionante ver o policial militar agredindo uma passeata de professores. Isso é o fim do mundo. De repente quem está sendo agredido ali é o professor do filho dele. O professor que está reivindicando melhoria para a educação não pode ser agredido por esse policial.
“Não acredito que violência gera compreensão.”
No Brasil, em manifestações com cunho político e presença de milhares de pessoas nas ruas, a PM tem agido de modo violento contra pequenos grupos denominados black blocs, que as TVs e jornais chamam de vândalos. Afinal, quem está por trás das máscaras? Jovens em revolta, arruaceiros ou infiltrados da própria polícia?
Não sei nem ninguém sabe. Na verdade isso não é um grupo organizado. É uma tática que ocorre quando acontecem manifestações. Os black blocs não se reunem para sair quebrando coisas fora de uma manifestação. Quando há uma manifestação, essa tática pode ser utilizada por qualquer pessoa. Pode ser qualquer um, até um policial infiltrado… Mas se a gente for ver bem o perfil desses jovens, muitos são de camadas populares. Essa juventude está colocando esse ódio para fora, porque não está sendo contemplada em nenhum projeto político do atual modelo econômico. Não me cabe fazer juízo de valor. Se está certo ou errado. Mas por conta de uma violência praticada contra o patrimônio, não se pode naturalizar a violência contra pessoas. Cegar com tiro de bala de borracha… O Estado brasileiro está a dizer que a vida vale menos que a vidraça de um banco. Não estou fazendo um discurso a favor dos black blocs. Estou dizendo: “Não acredito que violência gera compreensão”.
“Não podemos ter medo de legalizar as drogas. Devíamos ter medo de manter as drogas na ilegalidade.”
Você é membro da Leap (Law Enforcement Against Prohibition), ONG que tem em seus quadros policiais e que trabalha para a descriminalização total das drogas. Como seria isso?
Não, trabalhamos para a legalização total. Da produção, comercio e consumo das drogas. Não adianta regulamentar somente uma das etapas. Se fala muito do que não deu certo na Holanda. Mas a Holanda não regulamentou a produção da maconha. Somente o comércio e o consumo. Por isso não podemos dizer que a Holanda foi uma experiência de legalização. A primeira experiência internacional de legalização foi a do Uruguai. Temos que regulamentar as drogas para que o consumo se dê gerando menos violência para a sociedade. A proibição gera violência maior. Muito mais pessoas morrem na guerra contra essas substâncias do que pelo uso delas. E sabemos que o mercado das drogas aquece outros mercados, como o das armas.
E por que legalizar todas?
Não adianta legalizar só a maconha, porque você entra no campo do proibicionismo: proibir algumas drogas em detrimento da maioria, que é legal. Há de se regulamentar dentro da perspectiva de que a droga não chegue ao mercado de qualquer maneira. O Carl Hart (neurocientista e professor da Universidade de Columbia) já provou que a sensação de quem fuma crack é a mesma de quem cheira cocaína. Se você oferece no mercado uma droga menos lesiva e que gere a mesma sensação na pessoa, o crack vai desaparecer. Não podemos ter medo de legalizar as drogas. Devíamos ter medo de manter as drogas na ilegalidade, porque elas chegam cada vez pior no mercado, a violência é cada vez maior, gerando uma letalidade e um encarceramento em massa de pessoas pobres. Porque quem morre ou vai preso são pessoas pobres, né?
O prefeito de São Paulo João Doria ordenou a retirada de usuários de crack das ruas à força, seguida de internação compulsória…
É o desmonte de um projeto que havia na área de saúde, com clínicas de rua, que contemplava o uso abusivo de drogas com a existência daquela pessoa. Não adianta olhar para a cracolândia sem pensar na política de habitação e de saúde. Tem que ser tudo integrado. Na verdade, o crack é o efeito da pobreza, não é a causa. Não foi o crack que colocou aquelas pessoas naquela situação. O problema das drogas deve ser observado dentro do contexto de vida de uma pessoa. Temos que olhar menos para as drogas e mais para as pessoas. E a internação compulsória, num projeto político, é justamente não olhar para a pessoa, é fazer com que ela desapareça do mapa. Isso é um absurdo porque não funciona.
“A questão espiritual é uma questão política. Ela é o cerne da construção da vida política.”
Você é um devoto fiel de Krishna, um dos deuses do hinduísmo, tem até seu nome tatuado nos braços. Não deixa de ser curioso, já que partiu para uma profissão que em geral é sinônimo de violência. Onde está o ponto de contato entre as duas coisas?
Isso se dá muito pelo desconhecimento. Hare Krishna ficou muito associado à questão do pacifismo, no momento em que chegou ao Ocidente, onde os primeiros devotos eram hippies, e no contexto da guerra do Vietnã. Mas o livro que seguimos, o Bhagavad Gita, mostra Krishna no meio de uma batalha onde morrem milhares de pessoas. E quando Gandhi fala de Ahimsa como não-violência, a tradução mais correta da palavra em sânscrito é violência desnecessária. Todo mundo sabe que este mundo é violento. Na alimentação você não tem como se alimentar sem ser de forma violenta. Você se alimenta de outra entidade viva. O que se propõe é a redução da violência. Se eu posso me abster do consumo de animais, sou vegetariano, e me alimentar só de grãos e frutas, estou reduzindo a violência. Acho que a questão do delegado tem muito a ver com isso, dentro do que construí politicamente.
Tem gente que entoa mais de mil mantras por dia…
Só canto um mantra. Hare Krishna, Hare Krishna, Krishna, Krishna, Hare, Hare, Hare Rama, Hare Rama, Rama, Harerae. É o mantra que recebi do meu mestre espiritual e que contempla todos os outros. É suficiente para trazer essa força e essa identificação… A questão espiritual é uma questão política. Ela é o cerne da construção da vida política. Na espiritualidade, a gente pode se reconhecer na vida dos outros. E na política, necessariamente, a gente tem que fazer isso.
Qual o seu Deus?
Krishna.