NUNO RAMOS: UM ARTISTA EM TEMPO DE URUBUS E ANGU ESTRAGADO, MAS QUE QUER JOGO
por Heloisa Eterna | foto Eduardo Ortega
Nuno Ramos, a arte é, também, uma maneira do artista se expressar como indivíduo politicamente. Qual o objetivo da sua arte? Protestar, conscientizar…
Não penso assim, né? Mas às vezes alguma coisa mais política me vem. No “111” (obra produzida sob o impacto do assassinato de 111 presos no Carandirú, pela PM, em 1992) foi uma coisa em que me envolvi muito. Mas é raro conseguir lidar com isso de um modo mais direto. Nada contra, só precisa ser rico, interessante. Então não consigo responder diretamente: ah, eu protesto e tal. Mas toda obra tem o seu aqui e agora, e quer reagir a isso. Quando componho (Nuno é também músico) essa coisa imediata está mais viva, as músicas respondem de um modo mais direto à circunstância que estou vivendo. Mas não acho que tenha uma regra. Mesmo um quadro mais formal, abstrato, tem um desejo de vida, aponta para alguma coisa. E, às vezes, a coisa mais explícita, até mesmo por ser muito servil às necessidades da vida, é pouco política, mais conformista. A arte é um bichinho que trai muito o que a gente espera dele. É para isso que ela foi inventada, para não ser uma aplicação, um ministério, uma função do mundo. Ela tem a sua casca de jabuti para reagir, principalmente numa era em que tudo é instrumentalizado, em dois minutos está tudo dominado. A própria arte vem se deixando usar demais. É importante lembrar que nada é muito o que parece, coisas que vão para um lado às vezes querem dizer o contrário.
Em 2016, quando a Justiça de São Paulo anulou o julgamento dos 74 policiais envolvidos no massacre do Carandirú, você organizou um ato-protesto via internet, no qual outros artistas liam durante 24 horas os nomes das vítimas. O que te move a criar um evento dessa natureza?
São duas obras bem diferentes. “111”, criada muito próxima à invasão e assassinato deles, de fato foi uma das poucas coisas que fiz reagindo a algo concreto. Me lembro de ver aquilo pelas bancas de jornal, aquelas fotos em cores, aquele sangue, a própria exposição sem vergonha daqueles mortos nus, que não tinham nem direito ao pudor da própria morte. Havia uma exposição marcada, e eu dei uma virada nela, usei elementos em que estava mexendo, e pintou uma coisa que veio com muita facilidade: essa história de martírio do pobre no país, do martírio anônimo. Devo um pouco a esse trabalho minha passagem de pintor para artista em três dimensões. Acho que isso me toca muito, essa coisa do presídio, porque parece uma situação exponenciada da vida do pobre fora de lá. Da ausência completa de cidadania, de direitos claros, uma espécie de autogestão, que mesmo ali na cadeia existe. Quer dizer, o Estado lá também não está. Apesar de ser uma situação de grande coação, eles gerem a própria vida e isso muito próximo da morte. Se algo acontecer não tem importância nenhuma, a vida deles não vale nada. Isso tudo me parece muito verdadeiro para uma multidão de deserdados que o Brasil nunca conseguiu atender.
Mesmo depois de sete anos da chacina o tema repercutiu bastante. Essa leitura via internet teve audiência de 1 milhão de pessoas.
A leitura foi uma coisa menor. Toda vez que acontece algo sobre o julgamento, pedem para montar a exposição do “111”. Mas ela é muito grande, cara para montar. Fiquei tão chocado com aquele juiz, que deu aquela sentença não só anulando a anterior, mas inocentando os guardas como se nada tivesse acontecido e eles tivessem agido certo, que, sem querer ensinar nada a ninguém, fiz isso. Achei que a única coisa que tinha sobrado deles era o nome, e que a gente devia ficar soprando esse nome 24 horas por aí, pela TV, pelo Facebook, ao vivo. Isso é uma pequena atualização da carga de horror que foi aquilo. Uma performance coletiva que propus, uma espécie de luto, para dizer que a causa deles, o nome deles, o que restou deles ainda de alguma forma existe em todo mundo.
“Estou mais puto do que desesperançado. Acho que a gente se meteu numa encrenca danada. […] O que resultou desse angu foi o pior de nós.”
Diante de tudo isso, você se sente desesperançado com seu país?
Olha, cara, desesperançado… Não gosto dessa palavra. Eu estou mais puto do que desesperançado. Acho que a gente se meteu numa encrenca danada, um negócio foda de sair. A gente vive uma espécie de crise da semelhança, onde o que era para se separar se igualou a ponto de que agora é muito difícil conquistar as diferenças de novo. E o que resultou desse angu foi o pior de nós, né? Uma esquerda incapaz de fazer uma crítica, de pensar adiante, de aprender, de propor. E uma direita incapaz de reconhecer o seu lado truculento, seu golpismo, seu cinismo e a percepção da própria violência. Agora, eu quero é tocar para frente. Tem que achar saída, tem que brigar, tem que poder discutir, desemburrecer. A gente não pode ficar nessa espécie de moralismo que o Brasil está, em que você fala meia palavra e já te enquadram como isso ou aquilo. Ninguém mais discute nada. Então, desesperançado, não. Mas acho que a gente está vivendo uma espécie de revertério, que exige muito de todo mundo. Vamos ter que fazer conexões entre nós. Mas sim, é uma mudança grande, alguma coisa, digamos, da pós-ditadura, da Constituinte que parece terminar aqui. Vamos ver o que a gente consegue fazer. Mas eu estou a fim de jogo.
Há um público que não reconhece como arte o que um artista considera arte. Alguns não vêm sentido numa instalação ou pintura mais subjetiva, que não transmita informação ou provoque reação logo de cara. Quando você cria algo, espera aceitação imediata ou gosta de provocar essa dificuldade de entendimento? Ou isso nem passa pela sua cabeça?
Nesses termos, não passa. Acho que todo artista tem uma espécie de vocabulário, que não vem do nada, ele já carrega isso consigo. Você trabalha um pouco a tentativa de negar o que já fez, ao mesmo fica dentro de uma linha de constância ao estilo. Uma espécie de jogo de negação e de preservação dos elementos, que varia muito de artista para artista. Isso depende da poética de cada um.
E como você lida com o público?
A coisa com o público no Brasil é complicadíssima. Como escritor, publiquei sete livros, devo ter 12 mil exemplares vendidos. É muito pouco. Essa figura de um público é rara na vida de todos nós como uma coisa que não seja fictícia ou muito manipulada. Algumas vezes na minha carreira senti a coisa pública. A obra “111” fugiu um pouco à especialização da arte. Também aquela polêmica com os urubus, os grupos ecológicos, nego se acorrentando (na Bienal de São Paulo, em 2010, a instalação “Bandeira Branca” mantinha três urubus vivos dentro de um viveiro). Aquilo escapou ao controle e ao circuito da arte erudita. Senti, para o bem e para o mal, uma resposta do público. Mas o dominante no Brasil é você trabalhar na situação de um público pequeno. E que por isso não está verdadeiramente exercendo uma pressão sobre você. O cinema consegue público, a literatura de alguns autores, a TV com certeza. Não é que o fluxo nas artes plásticas seja tão pequeno. Você faz uma exposição numa instituição como MAM ou CCBB, as escolas vão, dá 70 mil pessoas. É muita gente. Mas mesmo assim, sinto que o público ainda não se configurou. O espaço público no Brasil, ainda mais em cultura, é o ponto difícil. Se a gente não consegue criar uma cidadania básica, você pensar um espaço cultural ainda é um negócio muito distante. Acho que a questão do público, quando penso no que faço, estou pensando numa coisa muito próxima, de pessoas que conheço, ou de mim mesmo, que finjo que sou outra pessoa e avalio aquilo que estou fazendo.
“Acho que é do jogo. As pessoas têm todo direito de protestar.”
No caso dos urubus, embora você afirmasse que eram animais de cativeiro e que já haviam participado de outros eventos, houve abaixo-assinado contra a presença da obra. Acha que esse tipo de intolerância tira a liberdade de criação do artista?
Acho que é do jogo. As pessoas têm todo direito de protestar. O que eu me queixei lá não foi da reação… Aquilo foi muito violento, pouco dialogal, tenho muitas críticas. Peguei três animais de zoológico, que estavam presos numa outra jaula que era 1/32 avos daquela e onde eles estão hoje sem que ninguém fale nada. Quer dizer, é sempre assim. No caso exemplar, todo mundo fica incrível. E depois que diminui a publicidade que esse caso exemplar dá aos próprios críticos, eles desaparecem e se conformam inteiramente com a situação banal dos animais. Ninguém está mais pensando em urubu hoje em dia, a não ser naqueles três que eu pus lá, porque houve uma situação de mídia grande. Nesse sentido, acho que foi uma coisa nefasta e burra. Nunca me disse censurado, não brinco com essa palavra. O que não é do jogo: trabalhei junto com a instituição, nós pedimos a licença para fazer aquilo, e tivemos. Quando esse negócio começou, tivemos uma segunda licença. Aí uma terceira instância, por influência política, nos proibiu. Um burocrata, que está escondido num escaninho qualquer, acha que pode exercer o poder dele.
Muitas vezes quando se conhece a obra de um novo artista, vem à cabeça ser uma repetição de nomes consagrados como Basquiat, Rauschenberg e outros mais. É possível ser original sem parecer mais do mesmo?
Acho que isso varia muito. Um artista pode ter uma originalidade enorme, e no entanto estar numa região razoavelmente parecida. É o que eu chamo de estilo, uma maquininha onde a artista joga fora alguns e preserva outros traços. Isso depende muito de cada um. A velocidade estilística não garante nada. O Mondrian fez 25 anos de vertical/horizontal e cores puras, muito diferentes entre si. Supervaleu, graças a Deus ele fez isso. Só mudou no (quadro) Broadway Boogie-Woogie, que é o finalzinho da obra dele. O Pollock fez oito anos de “dripping” (a técnica de respingos sobre tela), ainda bem que fez, aquilo tinha carga para isso. O Picasso variava demais, o Matisse, que mudou toda a pintura, um pouco menos. Isso tudo vai de cada um. Então, mais do mesmo, às vezes a variação é o mesmo e não o mais. Às vezes, aquilo que parece diferente é superficial. No meu caso, carrego uma variação estilística grande, uma coisa minha, funciona assim. Não acho que haja vantagem alguma intrínseca nisso.
Há muita controvérsia com relação a artistas que licenciam o seu trabalho, permitindo a transferência do desenho para esculturas, produtos e pôsteres. O trabalho de um artista torna-se menor por causa disso?
Se o Andy Warhol ou Jeff Koons fizer isso, acho que você vai estar mais próximo da poética deles. Acho que se pegar o trabalho de não sei quem e imprimir numa bolsa, de fato perde, não curto não. Mas sei lá… Acho que o ponto não é esse. O curto circuito entre arte e mercadoria já foi e voltou tanto, que é difícil ter uma sentença universal. O Warhol, que é o cara que inventou um pouco esse lugar, conquistou uma ambivalência tão grande… Você pensa que aquilo é um entreguismo, e na verdade… Putz, ele está falando da morte, está fazendo, via sopas Campbell, uma das críticas mais intensas ao modo americano de ser por dentro. Então acho que depende da poética de cada um. A tendência da apropriação no sentido mais rastaquera da obra de arte, acho que é, sim, diminuir. É uma coisa mais boba.
“Tenho medo, às vezes, de não dar tempo àquilo que eu faço.”
Você atua em várias frentes. É pintor, desenhista, escultor, escritor, cineasta, cenógrafo e compositor. Isso traz alguma angústia criativa?
Sim. De que eu não esteja dando tempo, e, inconscientemente, esteja escapando das dificuldades que cada momento me propõe, pulando para outro galho. Isso é uma certa angústia de fundo. Uma fantasia de culpa, ou sei lá o quê, que existe dentro de mim. Por outro lado, acho que não faço isso porque quero, mas porque meu trabalho acontece assim. Não é bem uma escolha, é quase uma necessidade. Em “Um artista da fome”, do Kafka, um cara se especializa em greves de fome e o público acompanha, mas depois isso sai de moda e ele fica jogado numa palha, no circo, até que descobrem ele ali e perguntam porque que faz aquilo. Ele responde que se soubesse de qual alimento gosta, ele comeria. E diz que não come porque nunca achou. Acho que isso define muito a arte. Quer dizer, não é uma escolha no sentido impositivo. Acho que ela vai acontecendo para quem faz arte. Eu trabalho com muita coisa porque isso foi se fazendo, não é que eu ache isso melhor do que outras formas de se fazer arte. A angústia, para usar a sua palavra, em relação ao modo como eu funciono, vamos dizer assim, é um pouco essa. Tenho medo, às vezes, de não dar tempo àquilo que eu faço, no sentido de poder viver a carga de dificuldade de cada obra até o fim.
Falando num outro “tempo”, o do relógio, ele anda curto para você?
Sim, acho que sim. Tem uma parte grande do meu dia fazendo isso que eu estou fazendo agora com você. É uma conversa, é uma entrevista. Talvez há algumas décadas o lugar do artista fosse mais isolado, talvez com mais tempo. Tem o tempo lógico, do relógio, mas tem um tempo de dispersão que também é superimportante para você poder fabricar o seu imaginário, né? Às vezes ver uma porcaria, um filme… Então, me sinto trabalhando quase que o tempo todo.
Um artista famoso disse que pensa na arte como uma prática monástica, não como uma carreira onde pode ganhar dinheiro. E você?
Monástica nunca. Eu respondo a estímulo, à demanda. Estaria mentindo se dissesse que não. É claro que a fonte do que eu faço não é uma demanda específica. Mas também preciso produzir de acordo com minhas possibilidades, meus recursos, com espaço e prazo que me dão… Isso tudo vale muito. Então, não me sinto fora de um contexto. Nem no sentido de estar completamente desligado do contexto político, institucional, que de alguma forma rebate em mim. Mas também no sentido prático, que interfere muito no que você faz.