CAROLINA JABOR: CINEASTA VASCULHA A FANTASIA FEMININA PARA FALAR DO PRAZER, E MOSTRA O LADO NEFASTO DAS REDES SOCIAIS
O filme “Aos Teus Olhos”, que você dirige, mostra o linchamento social de um professor de natação (Rubens, interpretado por Daniel de Oliveira) acusado de ter beijado um de seus alunos. A mãe inicia a denúncia no Facebook antes de uma investigação mais aprofundada, com base apenas no que o filho teria contado. Como você reagiria se o filho fosse seu? *A diretora é mãe de João, de 10 anos, e Alice, 4.
O filme tem uma característica que me fez me colocar no lugar dos personagens. Ele é sobre vários tipos de moral. Não existe uma moral única, eu pelo menos não sigo a moral que todo mundo segue. Cada um tem a sua. Claro que tem tem questões éticas pelas quais a gente é regido, ainda bem. Como mãe, minha reação não seria tão histérica como a dela. A reação dessa mãe é muito verdadeira, conheço muita gente, especialmente mulher, que é impulsiva diante de uma situação muito delicada, como uma coisa que está fazendo mal a seu filho. É difícil você ter a razão em primeiro lugar, o critério, a calma. Eu reagiria de uma forma muito emocional, porém iria procurar entender melhor, sou menos louca do que ela. Tento ponderar mais, considero todos os lados quando vou avaliar uma situação relacionada a meus filhos. Tenho muitos anos de psicanálise, a percepção do que está por trás. Se houvesse um caso, de fato, em que eu percebesse que meu filho estaria sofrendo abuso, aí eu iria pro pau. Perderia o meu chão, porque é um negócio muito sério.
Embora nenhuma cena mostre que o professor de fato abusou do menino, como o personagem do Daniel de Oliveira é sarcástico, uma visão mais conservadora apostaria que sim. Como espectadora, qual seria o seu palpite? Já fez esse exercício?
Já fiz algumas vezes, mas não como espectadora. Varia muito. Outro dia vi o filme novamente, e achei o Rubens culpado, mas não como pedófilo. É muito doido, porque torço para ele ser inocente. Tivemos 20 dias de leitura de mesa com o elenco, dissecando o roteiro, falando muito de cada personagem. Sobre o Rubens, teve uma hora em que o Daniel, que é todo na dele, é muito sutil e muito forte quando entra no papel, me disse: “Acho que eu deveria saber se ele fez ou não, né?”. Se alguém sabia, seriam o Rubens e o menino. A gente conversou bastante. E decidimos que ele não era um pedófilo, que não havia ali o interesse dele de abusar de uma criança. E eu não queria fazer esse filme. Mas o Rubens é um cara muito emotivo, carinhoso. O beijo pode ter esbarrado, ter passado pela boca. Ele pode ter percebido isso, mas também não quis falar com o garoto. Ou pode ter dado num gesto mais carinhoso. Aí você fala: “Que linha é essa que esse cara cruzou?”.
“Gosto de saber que as pessoas não sabem onde estou.”
(Sobre a exposição nas redes sociais)
Uma das boas nuances do filme é justamente não deixar claro se o professor de fato cometeu um ato de pedofilia. Como vocês conseguiram amarrar isso no roteiro, na direção e na atuação do Daniel de Oliveira?
A primeira coisa foi decidir que o Rubens não é um pedófilo. Isso muda tudo, define muito o personagem. Agora, ele é um cara com uma moral mais solta. É supercarismático, superadorável, superquerido. Vai levando a vida de um jeito achando que está tudo certo, que não tem problema nenhum, a ponto que pode ser que tenha dado um beijo ou não. Ele é meio gay, poderia ser bissexual. A gente tentou construir um cara não muito certinho. No filme dinamarquês “A Caça”, sabemos desde o início que o personagem é inocente, vemos a cena; passamos o filme todo sabendo que a pessoa está sendo injustiçada. No nosso caso, a gente queria gerar discussão sobre o julgamento. Era importante construir um personagem ambíguo. Eu, o Lucas Paraizo e o George Moura (roteiristas) marcamos as cenas onde ele deveria se fazer mais inocente e em outras mais culpado. Desenhamos um jogo. Aqui, um personagem mais bonzinho, carismático, que todo mundo gosta. De repente, ele faz um comentário no vestiário sobre a mãe de um garota. Aí você fala: “Ele é mais doido do que a gente estava vendo”. Logo, a mãe do menino coloca a história do beijo na internet, parece uma injustiça, a gente acha que aqueles pais estão em crise, e isso inocenta um pouco o Rubens. Ao mesmo tempo ele não se defende.
O linchamento virtual tem gerado muita discussão sobre o papel das empresas que comandam as redes sociais. Você não se expõe muito no Facebook. É uma maneira de se preservar?
Nunca entendi a pessoa abrir sua privacidade. Prezo como um diamante a minha. O que tenho em volta, as pessoas com quem quero conviver, a minha família. Gosto de saber que as pessoas não sabem onde estou, ao contrário do que se está desenhando, agora com o Stories do Instagram, por exemplo. As pessoas têm uma necessidade louca de dizer onde estão, o que estão fazendo, que maravilha de show. Você própria começa invadir a sua privacidade fazendo coisas para o outro porque está sendo vista. Isso sempre me incomodou. Uma hora pirei com o Facebook, falei: “Credo, não vou mais aqui”. Ficava vendo foto de aniversário do filho da fulana, quem tem as melhores férias. Gastei uma semana fazendo uma curadoria no meu perfil. Arrumei no meu feed só quem eu gostava de ouvir a opinião; os jornais; quem meu amigo que gosto muito segue; comecei a descobrir pessoas novas. Tudo uma bolha. Pensei que tinha um feed bacana (risos). De repente, entendi que esse feed era só um olhar. Aí comecei a sacar a “pira” dos algoritmos.
“Enfrentei 300 momentos machistas. Muitos deles não ditos.”
O movimento “Free the Bid”, do qual você faz parte, aponta que num processo de concorrência as agências de publicidade sempre apresentam ao cliente três sugestões de diretores do sexo masculino, tirando a oportunidade de trabalho para mulheres diretoras. Ao mesmo tempo, sua equipe na série “Desnude” (GNT), que deveria ser formada só por mulheres, não encontrou uma eletricista, acabando por contratar um homem. Você acha que essa questão das agências é puramente uma visão machista ou há um número pequeno de mulheres no mercado audiovisual? Ou as duas coisas?
No período em que trabalhei com publicidade, de fato, enfrentei um machismo “não dito”, quando as pessoas acabam direcionando a sua carreira. Eu sempre fiz filmes de beleza ou ligados a produtos femininos. Absorventes íntimos, xampus. Era especialista em filmes de cabelo. Arrasava (risos). Tive uma experiência sensacional, que foi um filme de cerveja. “Takeei” três vezes. Apresentei o primeiro, eles não gostaram; apresentei o segundo, também não; no terceiro, falei: “É melhor chamar um cara para fazer isso. Porque eu não tenho condição”. Sim, tem machismo. Sim, está melhorando. Eles estão precisando renovar esse olhar, e dar mais chances às mulheres. Tem gente no mercado para fazer, mas como não dão chance, não tem rolo, e sem rolo você não pega o filme. O “Free the Bid” reivindica que as empresas apresentem ao cliente, entre as indicações, ao menos uma mulher para dirigir o filme. Já tem um número grande de agências apoiando.
A Conspiração Filmes criou a plataforma digital “Hysteria” para dar voz às mulheres no audiovisual. Quando recebe uma encomenda de uma agência, a produtora tem como forçar a barra para que o trabalho seja tocado por uma mulher? *Carolina e mais duas diretoras são sócias entre outros 16 diretores na Conspiração.
Acho que sim. Dependendo do escopo do projeto, a gente direciona para um determinado diretor. Tem projetos que adoro, que têm grande potencial, mas que acho que não sou eu que tenho que tocar. Aí ofereço para um outro diretor. Entendo a necessidade de levantar bandeiras, mas já trato muito na minha vida a questão da igualdade. Comecei na Conspiração como assistente de direção em 1993, me formei no meio de 200 machos. Como consegui — não é chegar onde cheguei não, porque isso daí tô chegando e vou chegar até o fim da vida — lidar com essas situações de machismo no cinema? Cara, lidando, indo, sem muito medo de furar, sem muita repressão, de achar que sou mulher, tadinha de mim, que os homens são uns filhos da puta. Não. Eu fui indo. Claro que enfrentei 300 momentos machistas. Muitos deles “não ditos”, não percebi que estava enfrentando. Mas nunca me chegou um filme de carro para dirigir. Nunca orcei um filme de carro. Porque eles acham que filmes de carro são homens que fazem. Isso é o machismo “não dito”. Ninguém me agrediu com isso, mas não fiz. Isso a gente enfrentou ao longo dos anos. Acho que a mulher não tem que ter medo. Quer ser diretora? Quero. Então vai. Quer ser diretora de fotografia? Vai. Quer ser gaffer (eletricista)? Pô, é do caralho. Não tem profissão mais delicada do que um gaffer. A mulher ia fazer isso bem demais. Como é que não tem ainda? No Brasil. É lindo. Você “pintar” um set, fazer um detalhe, o negócio da luz…
“O sexo tem muitas outras variáveis.”
Você diz que a série “Desnude” não levanta nenhuma bandeira, que o foco é colocar a mulher como protagonista do desejo, tendo controle do próprio prazer. E que assistiu a vários filmes eróticos da diretora sueca Erica Lust. Foi uma inspiração? *A série traz histórias de ficção inspiradas em relatos reais. É estrelada por nove atrizes, entre elas Claudia Ohana, Clarice Falcão e Laura Neiva.
Esse projeto nasceu com o desejo de produzir pornô para mulher. Foi quando conheci o trabalho da Erica Lust. Assisti bastante, porque não tinha o costume de ver pornô. Adorei os que ela faz. Não sou uma pessoa que gosta de pornô, não vejo pornô para transar. A Erica tem um olhar feminino para este assunto. Acho que isso atiça mais a excitação da mulher. Mas o “Desnude” não é pornô, não tem sexo explícito. É uma série erótica. Fala da busca do prazer, do autoconhecimento, do conhecimento do prazer ou não-prazer. Tínhamos uma gama de caminhos para seguir, e resolvemos centrar nas fantasias. A mulher tem um prazer muito cerebral. O contexto tem que estar presente, pra gente entrar naquela onda. Como linguagem, a fantasia abre uma possibilidade não-linear. O assunto ainda é tabu. Tem mulheres que acham que estão traindo os seus maridos por estarem fantasiando com outro homem, outra mulher. Queríamos discutir o prazer. Tudo no audiovisual produzido para falar de sexo, geralmente é pelo olhar masculino. Mesmo o nosso prazer genuíno, verdadeiro, é condicionado a um prazer baseado no prazer masculino, na penetração. E não é bem assim. O sexo tem muitas outras variáveis. A mulher tem que entender que o prazer não é só com a penetração, conhecer o prazer clitoriano. O mistério do prazer da mulher é muito maior do que o do homem. O homem bota o pau lá e goza. Até hoje, pro cara entender que você já gozou, vai gozar, está gozando… Eles não entendem muito. Você goza várias vezes, eles gozam uma; tem que esperar pra ficar de pau duro de novo. A mulher, não. Tem prazeres mais misteriosos. Por isso uma equipe formada de mulheres, porque a gente entendia melhor a questão toda do prazer da gente, da loucura da gente. Um olhar feminino para ir contra o falocentrismo.
Qual a maior dificuldade da direção nas cenas de sexo? É ser convincente?
Quando partimos para esse projeto, nós cercamos muito essa questão da fantasia, do contexto, do que excita ou não. No meio do processo, quando já havíamos criado as histórias, eu disse que, por mais que não fôssemos mostrar pau e buceta, íamos falar de sexo. E a gente não podia ter medo disso. Fazer cena de sexo é um desafio. Você lida com atores que estão simulando aquilo. Mesmo fazendo a coisa mais realista possível, no free style, liga a câmera e eles vão se pegar, continua sendo ficção. Tem que haver cumplicidade com o elenco. Nenhuma cena de sexo era gratuita. Tinha uma função dramatúrgica. Não era só para dar tesão num casal que estava vendo na televisão. Também tem que combinar que é técnico. E, ao mesmo tempo, todos têm que estar à vontade. É preciso criar uma atmosfera em que todo mundo entre junto. É dificílimo. O fato de serem mulheres na equipe tranquilizava as atrizes. Algumas com quem conversei disseram que ficavam mexidas quando eram dirigidas por um homem. Eles não sabem que aquilo também está sendo feito para o prazer das mulheres. O homem tem um olhar próprio. No negócio do sexo, cada um tem uma visão. Em outras situações, não.
“As mulheres têm que ser chupadas.”
Mas existe um olhar feminino?
É contraditório o que vou dizer. Não tem que ter filmes que deveriam ser feitos por mulheres, ou filmes que deveriam ser feitos por homens. Bullshit. O “Guerra ao Teror” é dirigido pela Kathryn Bigelow. Um filme supostamente masculino feito por uma mulher. “As Horas”, do Stephen Daldry, é um dos filmes mais femininos que já vi. Não tem regra. Há filmes ligados ao seu desejo de contar uma história. Independe se você é mulher ou homem. É a história que está relacionada com seu íntimo. No caso da “Desnude” havia a necessidade de ter um olhar feminino, porque queríamos falar do ponto de vista da mulher sobre aquele assunto. Não poderia trabalhar com um monte de homem porque ia dar defeito de compreensão. Acho que tem homens com um olhar extremamente feminino e mulheres com um olhar extremamente masculino. O bom é isso. Mais doido, menos polarizado, menos segmentado. O próximo passo deveria ser esse. Igualdade em todos os sentidos. No momento, a gente ainda precisa colocar as mulheres numa cota, sei lá. Parece que vai ter uma cota para botar mulher no cinema. Maneiríssimo ou bobo. Mas tem que ter. Daqui a dez anos espero que esteja todo mundo mais misturado.
Você também fez opções estéticas que suavizam as cenas.
“Desnude” é uma série para a televisão. Queria muito que aquela fotografia fosse bela. Sei que o sexo não é só belo. O sexo é feio, sujo, grosso, pesado. Mas ali há uma estilização da cena. É diferente do pornô que você vê na internet, em filmes. Ali havia um cuidado estético porque escolhemos assim. Estudamos bastante, vimos muita cena de sexo, filmes que a gente gosta. Tinha um dossiê de situações, posições. E o negócio da chupada, a gente queria que fosse educativo mesmo. As mulheres têm que ser chupadas. Então, tem que ter chupada em todos os episódios. Era um pré-requisito para ter uma história (risos). Foi engraçado, a gente se divertia com isso.
“Estou num dos mais importantes momentos. Tipo: caraca! Chocada.”
(Sobre psicanálise)
“Desnude” fala do protagonismo da mulher com relação ao seu corpo. A mulher já não deveria ser protagonista quando o assunto é ter o direito de escolher entre abortar ou não?
Tá tudo errado. É uma loucura em pleno século 21 não termos esse poder. Até a própria lei deveria ter a clareza de avaliar situações terríveis, em que a mulher não deveria seguir com a gravidez, mas segue em situações trágicas. E o aborto é uma escolha da mulher. É uma coisa do corpo da gente. E também da capacidade. A gente tem que ter clareza e lucidez ao colocar uma criança no mundo. É um negócio muito mais sério do que abortar um feto. Sou totalmente a favor do aborto, até porque morreriam menos mulheres, aconteceriam situações menos barra-pesadas. E nasceriam crianças com mais qualidade de vida, mais possibilidades. Mas isso daí não anda, só piora.
Você faz terapia há 27 anos. Acha que a psicanálise pode levar para um caminho mais feliz ou menos infeliz?
Ajuda bastante. A primeira coisa que aprendi com a psicanálise, que acho fundamental para todo ser humano, é que não há uma idealização. A Carolina ideal. Não tem. É o que dá. Se ficar correndo atrás desse negócio para o resto da vida, você não vive. De fato, é a pessoa (o psicanalista) com quem mais troco. São questões muito profundas e incompreendidas ao longo da nossa vida, e que a gente só compreende realmente vivenciando essa conversa, esse encontro. Você passa por momentos de mais alívio, relativiza seus problemas. Como também tem momentos trevas, que você não sabe como sair dali. Todo autoconhecimento é bem-vindo. E estou falando nisso num mundo pós-psicanálise: a questão dos psicotrópicos, dos remédios e da rapidez de ficar feliz. Você tem que estar feliz sempre, no Instagram, bem na foto. Você tem que correr atrás disso. Não há mais o tempo da tristeza. Você tá triste, logo tá deprimida, logo toma um comprimido, toma um Rivotril ou sei lá o quê que vai melhorar. É rápido. Então, a análise é quase uma encheção (risos). Não é encheção, claro que não. Graças a Deus tenho a bandeira da psicanálise. Acho que melhora muito a vida do ser humano, cara. A minha, pelo menos. Estou num dos mais importantes momentos da minha análise. Tipo: caraca! Chocada. (risos). Psicanálise sempre tem assunto.