Mariana Lima

Mariana Lima, atriz | por Heloisa Eterna | foto Isabela Kassow | Fevereiro 2017

MARIANA LIMA: UMA ATRIZ QUE NÃO TEM MEDO DE FALAR DOS PRÓPRIOS MEDOS

Mariana Lima, o que mais te inspira?

Tem uma inspiração seminal, que é o interesse pelo ser humano, pelas diferenças. Por aquilo que nos aproxima tanto e que também pode nos distanciar. Quis fazer Ciências Sociais, minha vontade era estudar História, mas acabei entrando em uma companhia de teatro. Tinha 16 anos, e fui tragada. Aquilo supriu minha necessidade de estudo, de pesquisa e de leitura, que era uma coisa que gostava muito. E ainda gosto, porque é isso que me alimenta na construção dos personagens, mas como inspiração.  De poder fazer esse trânsito entre olhar alguém de fora e estar dentro desta pessoa. Uma inspiração forte é a literatura, crio a partir das leituras que faço.

E como isso se dá na vida real? 

Tem uma coisa antropológica para mim, de olhar andando. Tenho um olhar interessado, de compaixão com o outro, com a diferença do outro. Isso me move não só artisticamente, como também na vida. Converso com alguém nas ruas com interesse pela sua formação intelectual, espiritual, emocional. Faz parte do meu trabalho entender como funciona o coração e a cabeça de outra pessoa na literatura e na vida. Uma assassina em 1930, um terrorista nos anos 1960, um economista nos anos 2000. Nunca a pessoa está isolada. Ela está dentro de uma época, de um contexto, de um sistema onde atua e ao mesmo tempo tem necessidades básicas. Se apaixona, sofre, tem filhos…

Algum personagem te chamou mais atenção neste tempo?

Vários. A gente fez a “A paixão segundo GH” (romance de Clarice Lispector). Kike (Enrique Diaz, marido da atriz) dirigiu, eu atuei. Foi a primeira investida em literatura. Foi uma adaptação superlonga, um ano. O Fausi Arap (diretor, dramaturgo e ator) me presenteou com uma adaptação dele. Estou sempre lendo coisas e me transferindo, fazendo este exercício de transferência. É minha válvula de escape. “Viajo” mais lendo do que vendo TV ou cinema. A literatura ajuda a me manter viva e interessada.

“Não acredito no estado de autoconfiança plena, que não te lembre que você é frágil e imperfeito.”

E você consegue tempo para leitura? 

Leio o tempo todo. De manhã, depois do almoço, no táxi, no ônibus, esperando para filmar, em pé, parada, no meio da rua. Não tem uma hora em que eu pare numa poltrona para ler.

É autoconfiante quando está atuando? Ou há momentos de total insegurança?

Autoconfiança é uma coisa que se conquista e se perde o tempo todo. Como todas as pessoas, sou um poço de fragilidade, de insegurança, de medo das coisas não acontecerem… Posso dizer que o momento em que estou mais certa de mim mesma é quando estou atuando, a serviço daquilo que me define, que me compõe. Mas com o esteio da insegurança presente o tempo inteiro. Acho bonito quando esse jogo é equilibrado. Não acredito no estado de autoconfiança plena, que não te lembre que você é frágil e imperfeito.

O que você espera de um diretor?

Fui e sou abençoada por encontros com diretores maravilhosos no teatro, no cinema e na TV. Que foram bastante responsáveis pela atriz que sou. Tive muita sorte por trabalhar com pessoas que  admiro, com troca de confiança, que me desafiam. Não existe trabalho solitário. Gosto de me sentir dependente do diretor com este acordo, de que vamos juntos: eu vou cedendo, ele vai cedendo e me provocando… Gosto de exigência intelectual, física. Mas também que isso seja feito num acordo afetuoso, bonito. Trabalhei bem com o Antônio Araújo, que foi meu primeiro diretor no Teatro da Vertigem. Quando rola essa dinâmica, sinto que meu trabalho cresce, vai para lugares inesperados, que eu sozinha não me levaria.

Tem um diretor ideal?

Meu próprio marido.

“Mas a gente se admira e quer que o outro dê certo. É muito mais estimulante, amoroso e tesudo do que limitador.”

(Sobre estar casada com alguém da mesma profissão)

Perguntaram para Catherine Deneuve se ela ainda precisava ser dirigida… Você precisa ser dirigida?

Preciso. Acho que o meu trabalho, neste sentido, não é solitário. Ele é feito desse encontro. Não tem uma hora que você fale: “Ah, agora não preciso de ninguém”. Para mim, esse lugar não existe. Vou sempre, de alguma maneira, depender de um diretor. E é muito frustrante quando esse encontro não acontece porque o diretor ou diretora são fracos. Porque você fica num lugar já conhecido, fica armado, não se supera… O diretor é uma grande oportunidade de você sair de você mesmo e partilhar da visão de alguém, chegar a um acordo ali e discutir a cena, discutir a obra que você está trabalhando… Questionar.

Quais os prós e contras de estar casada com alguém com a mesma profissão?

No nosso caso são muitos prós, pouquíssimos contras. Primeiro, porque gostamos muito do que a gente faz. E nos admiramos muito. Acho que a gente se alimenta de viver do mesmo mundo de interesse. Os contras seriam ficar, às vezes, falando demais de trabalho. Mas gostamos de viajar, ficar com as crianças. Existe, no entanto, a administração das crianças com a vida de artista, em que os dois têm viagens para fazer de três, quatro meses. E o fato de não ter uma pessoa que signifique a estabilidade, mesmo que financeira e presencial. Os dois sambam muito para conseguir ter estabilidade física, material e financeira que a vida com crianças demanda. Mas a gente se admira e quer que o outro dê certo. É muito mais estimulante, amoroso e tesudo do que limitador.

A vaidade pode atrapalhar?

Pode atrapalhar o ser humano de um modo geral. Se venera demais a você mesmo, vai acabar fodendo com você mesmo, porque nunca vai chegar ao patamar em que se colocou. A mesma coisa em relação ao poder e à religião. Se venera demais a religião, a religião não vai te dar em troca nunca a quantidade de veneração, de adoração que você colocou naquilo. Se você acredita demais na sua beleza, na sua capacidade, no seu poder, vai acabar se frustrando. No fundo a vaidade é ruim para todos nós, porque a gente nunca vai chegar nesse ideal de nós mesmos. E os atores têm mais facilidade de cair nesta armadilha. Toda vez que fico muito vaidosa, acabo me frustrando. A vaidade cria este descompasso com a realidade. Admiro as pessoas que são mais desarmadas, que são menos conscientes da própria beleza, da própria fama, da própria capacidade… Nestas, vejo mais fragilidade do que vaidade.

” Uma coisa que procuro deixar bem claro é qual é a minha posição política.”

Que papel recusaria? Acha que a recusa de um papel pode fechar portas?

É uma pergunta delicada. Nunca neguei um papel porque jamais faria aquilo, ou porque ele não é bom, ou tacanho a ponto de ver que não possa crescer ou acrescentar. Não faria pornografia, campanha política para ninguém, não me associaria a uma marca.

Algum personagem do cinema que gostaria de ter interpretado?

Sou muito fã de algumas atrizes. Juliette Binoche em “A Liberdade Azul” (do diretor polonês  Krzysztof Kieslowski), um filme que gostaria de ter feito. Julianne Moore… Fernandona (Fernanda Montenegro), alguns filmes que ela fez.

Qual a responsabilidade do ator diante de tudo que estamos vendo no mundo de uma forma geral, não só no Brasil do impeachment? As questões políticas lá fora…

É uma responsabilidade de cidadão. Os artistas talvez sejam mais responsáveis porque conseguem acessar as pessoas através daquilo que pensam. Minhas escolhas podem interferir mais na realidade do que as de um anônimo. Embora, hoje, com as mídias sociais, as pessoas consigam expressar suas opiniões sendo anônimas. Muitas vezes discutimos na internet com quem  não sabemos qual é a formação religiosa, política… Isso diluiu muito a presença do discurso do artista, porque há uma quantidade gigante de subartistas e pseudoartistas, mas que têm o discurso às vezes muito potente. Uma coisa que procuro deixar bem claro é qual é a minha posição política, para que os poucos que me escutam, saibam quem sou.

“Você é, facilmente, colocado na fogueira virtual, que queima tanto quanto. Que pode te ferrar bastante a vida.”

É um momento de conservadorismo?

De hiperconservadorismo, de retrocesso muito grande em todas as ideias igualitárias e humanistas que a gente conquistou. É muito assustador o que está acontecendo. A esquerda ficou contaminada e prejudicada pela contingência histórica de onde ela chegou. Isso faz com que nós, eu que tenho formação de esquerda, fiquemos relegados a um lugar em que é preciso se defender. Como a gente vive uma ditadura diferente dos anos 1960/70, quando as pessoas não podiam falar, hoje tem que ter cuidado com o que se fala. Porque você é, facilmente, colocado na fogueira virtual, que queima tanto quanto. Que pode te ferrar bastante a vida. Você pode viver bombardeado por pessoas que acham que você representa o pensamento comunista. Não tem como ser comunista hoje. Agora, não dá para não entender que tudo que você fala e faz é política. Como você vota, anda, trata o outro, o que você pensa, lê… A educação dos nossos filhos.

Você se decepcionou com as pessoas?

Continua me espantando a posição de pessoas próximas, mesmo de familiares em relação às coisas todas que estão acontecendo no Brasil. Somado a isso uma crescente agressividade. Me parece que só piora e tende a piorar. Essa violência me faz mal. Me restringi: entro no Facebook uma vez por dia. Quando fico dois dias sem entrar, fico bem melhor. Escolho as coisas que leio. Minha página é fechada. Fiz um Instagram aberto porque o meu era fechado, só para amigos. Na terceira semana veio: “Sua comunistinha de merda”. Aí bloqueei. Passar por isso é uma violência. Preferiria ter a conta fechada, mas aí tem toda uma coisa de mercado, de ser preciso ter pelo menos um Instagram aberto.

Nas redes sociais alguns aplicativos de paquera fazem sucesso, como Tinder e Happn. Seus amigos usam? Acha que resolve a solidão das pessoas?

Para mim é um grande mistério, ainda não entrei neste mundo. Tenho uma parceria com a Marcia Leite e a Maria Flor (respectivamente, roteirista e atriz) para uma série protagonizada por mim e Flor, onde um dos assuntos centrais são esses sites de encontros. Através da pesquisa feita, conheci melhor este universo. Tenho mais amigos gays que usam. Para mim parece fácil demais, um açougue: passam aqueles corpos e você escolhe o que acha melhor. Não combina muito com a ideia que faço de encontro, de tesão, de interesse por alguém. Tenho duas amigas que começaram relacionamentos no Happn. Uma delas está namorando. Supercurioso que tenha encontrado o cara no meio da rua e o Happ avisou que ele estava passando… Acho da ordem do milagroso. É um jeito novo de resolver a solidão. Sou casada, então não me interessei por isso porque não estou atrás de alguém. Se estivesse solteira, talvez desse uma olhada.

De vez em quando sente que tem que dar uma sacudida na sua vida? 

Todo dia. Vivo em constante instabilidade. Toda hora reviro o terreno que estou pisando, procurando alguma coisa que me tire a sensação de conforto. Ou faço trabalhos que me tirem do cotidiano, ou escolho um tempo para ficar em casa para dali a pouco viajar e mudar de novo… Mexo bastante a terra, não fico muito enraizada.

“Acho o mundo bastante perigoso. Hoje, não pensaria em ter filhos.”

Ainda faz psicanálise?

Há 30 anos.

Tem horas que tem vontade de dar alta para analista?

Acho que não existe alta para analista. Vou morrer fazendo análise. A primeira análise que fiz devia ter 14 anos. É importante o diálogo com terapeuta. É um dos eixos de sanidade, de você poder falar da sua cabeça, do seu jeito de pensar, de sentir as coisas. Não é preciso falar com as pessoas que você conhece, com quem convive. Você já faz isso com essas pessoas. Mas ter um lugar onde vai tratar as suas questões é um privilégio.

Você tem duas filhas… Quando olha para o mundo hoje o que pensa? Quais são suas angústias?

Atualmente é uma perspectiva aterrorizante, tenho vivido angustiada com o rumo que as coisas estão tomando. Acho o mundo bastante perigoso. Hoje, não pensaria em ter filhos. Esse mundo que estamos deixando para elas é completamente cagado e fodido. O tempo todo estou tentando descobrir maneiras de colaborar para que as coisas não vão todas para o buraco. Damos uma educação bastante humanista para as meninas, a gente explica o que está acontecendo, para que elas tenham postura crítica do mundo. Acho que a democracia está ameaçada, os ideais humanos estão ameaçados, a ecologia. Nos meus 30 anos, quando minhas filhas nasceram, não imaginei que com 40 estaria com esta sensação do mundo. Mas não sou uma pessoa desesperançada, pelo contrário. Tenho muita fé que as pessoas vão conseguir reverter este cenário. Mas é uma fé quase que cega, porque não há nada dizendo para a gente neste momento que as coisas vão melhorar.

Existe um espírito de revolta com tudo?

Nós viramos um bando de cordeirinhos amansados. O neoliberalismo fez com que tivéssemos nossa segurança de vida mais ou menos estabelecida. E paramos de questionar. Não vimos a coisa vir. A ditadura não se estabelece de uma hora para outra. Ela estava vindo. E a gente estava tomando nosso cafezinho, consumindo nossas coisas, não estava vendo isto acontecer. Esse espírito de revolta está em mim. Mas os jovens estão dizendo “não” para isso. Espero que minhas filhas tenham pensamento crítico e revolucionário.

O que te deixa feliz?

Pequenas coisas me deixam feliz. A vida, o cotidiano, as crianças, o amor que sinto por elas e pelas pessoas, essa crença de que o ser humano é capaz de revolucionar… Eu me acho privilegiadíssima, agradeço todos os dias, porque olha só onde moro, o dinheiro que eu tenho, que não é muito mas me faz eu ter a vida que tenho, com esta certa segurança. Consigo ser feliz com pouco, lendo um livro, estando com as meninas, almoçando em casa num sábado e ficando à tarde aqui com os amigos. Sou uma pessoa feliz. Não sou uma pessoa amargurada, rancorosa ou que não consegue sair do próprio lugar porque fica sem saber o que fazer. Não!  Sinto impotência, sinto medo, sinto raiva, sinto terror de tudo. Mas vou dando um jeito de me satisfazer e agradecer com o tanto que eu tenho e que acho muito.

 

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