ALBERTO MUSSA: LITERATURA COM UMA PITADA DE UMBANDA, SAMBA E POLÍTICA
Alberto Mussa, você tem ascendência indígena e libanesa. Essa mistura influenciou a sua literatura, que aborda universos distintos como a cultura islâmica, histórias de escravos, sambistas, entidades de umbanda, etc?
Acho que as histórias dos nossos antepassados têm influência na nossa formação, na maneira de ver o mundo, na criação de uma coisa que é uma mitologia pessoal. Isso sempre me trouxe uma curiosidade. Não consegui comprovar que tive ascendentes que foram escravos no Brasil. Mas sempre me identifiquei com as heranças mais imediatas e reconhecíveis que estão na sociedade brasileira. A umbanda, o candomblé, a capoeira, o samba. De certa maneira é uma ancestralidade que reivindico como uma ancestralidade civilizatória, cultural.
Há também um interesse seu por diversas culturas…
Sempre fui muito curioso com a questão da diversidade. Lembro que entre os livros do meu pai, havia uma coleção numa estante dentro do meu quarto sobre as antigas civilizações, e eu me interessava muito em ler sobre os maias, os astecas, a Índia, a Grécia e o Egito antigo. Talvez daí meu interesse pela mitologia. Quando comecei a explorar o romance, sempre procurei conhecer a literatura do mundo inteiro. Li literatura africana, do Oriente, aquilo que chegava aqui nas línguas ocidentais.
Acredita, então, que o meio pode influenciar o gosto de literatura, por exemplo, em uma criança?
Não tem uma regra. Em qualquer coisa na vida, a pessoa já tem um programa, que ela pode desenvolver aspectos desse programa dependendo do meio que se está inserido. Esse meio pode estimular ou desestimular. Por exemplo, uma pessoa que pudesse ter talento excepcional para ser um narrador de romance, mas não teve condições de conhecer suas tradições, não vai desenvolver o romance, mas pode ser um grande compositor de samba de enredo, que é um gênero análogo.
De onde vem sua facilidade com outras línguas? Você aprendeu idiomas africanos, como quimbundo e iorubá.
Pode parecer que sou uma pessoa dotada de uma capacidade maior que a dos outros. Ao contrário, sempre tive dificuldades de me expressar em outro idioma. Tenho a capacidade de aprender o sistema das línguas, talvez pela influência da matemática na minha formação. E na faculdade de Letras tive linguística teórica. Minha dissertação de mestrado foi sobre o papel que as línguas africanas desempenharam na caracterização da língua no Brasil. Precisei estudar a estrutura de idiomas como o iorubá ou o hauçá. Também o tupi antigo, uma língua que me interessa muito, e o árabe, que consigo interpretar o que está escrito mas não sei falar. É como se eu tivesse aprendido o sistema matemático da língua.
“Pai Cristovão era um escravo que nunca se importava com os castigos corporais que recebia. […] Foi uma entidade que me influenciou.”
Você fez iniciação como babalaô, sacerdote do orixá Ifá, responsável pela interpretação dos mitos. O que mais chama a sua atenção nessa cultura?
Na família do meu pai, de origem libanesa e muito religiosa, uma parte era espírita kardecista, a outra católica fervorosa, e meus avós cristãos ortodoxos. Na parte da minha mãe, eram os católicos que iam nas cartomantes, nos terreiros de umbanda. Quando se é jovem, essa diversidade contribui para você querer saber por que uma pessoa pensa diferente da outra, e a confrontar essas crenças. De todas essas formas religiosas, aquela que me parecia a mais bacana, menos opressiva e mais libertária era a umbanda. Cheguei a tocar atabaque em um terreiro que frequentava com minha mãe, que era cambona, a pessoa que ajuda os filhos de santo que estão incorporados ali, e com minha tia, que recebia todo tipo de espírito: caboclo, preto velho, criança.
Você também recebia os espíritos?
Não tinha mediunidade para receber. Sempre fui o tipo de participante que não incorpora, então eu era o ogã, aqueles que tocam o atabaque.
Alguma entidade teve papel determinante na sua vida?
O Pai Cristovão das Almas foi um grande guia na minha juventude, com quem tive vários diálogos interessantes. Me influencia até hoje nas formas de encarar a vida. Ele era escravo, tinha as pernas quebradas. Enquanto meus colegas iam ao psicólogo, eu conversava com Pai Cristovão. Ele me dava orientações de como enfrentar as dificuldades da época. Meu pai era um cara repressor, Juiz de Direito, vivíamos na ditadura militar, morávamos no Grajaú, um bairro de classe média alta extremamente conservador. O Pai Cristovão era um escravo que nunca se importava com os castigos corporais que recebia e sempre reincidia nas faltas, não se curvava nunca. Foi uma entidade que me influenciou pela grandeza, pela força.
Mas existe um preconceito muito grande com relação à umbanda. Como você vê isso?
Tem a questão do desconhecimento, mas principalmente preconceito. A sociedade, no período da escravidão, separava a pessoa livre, que tinha uma cultura diferente dos pretos e dos escravos — que não eram nem considerados pessoas completamente. A divisão cultural era naturalmente exercida pelo status jurídico do indivíduo. Com a abolição da escravidão e com a tentativa de inserção desses ex-escravos no mercado de trabalho, o que aconteceu muito mal e incompletamente foi uma aproximação perigosa. Samba era coisa de escravo. A criminalização do samba começou com a República, assim como da capoeira.
“[…] Até a abstenção é uma forma política. Se existe uma escola sem partido, então ela tem um partido, que é o partido da abstenção ou o partido da alienação.”
Não é a partir daqui que temos também o desenvolvimento das teorias raciais?
Sim. Gilberto Freire, que é muito elogiado, é um ícone desse movimento, que coloca a raça branca num estágio superior, e índios e negros num inferior. Eles são menos capazes intelectualmente, produzem músicas, esculturas e pinturas que são inferiores ao que é produzido pelos brancos, que são mais bem dotados biologicamente. Vários pensadores brasileiros expressam esse pensamento. Mário de Andrade, com todo seu modernismo, pensava exatamente assim. Quando ele fala da música de feitiçaria, ele coloca exatamente isso: a música negra é inferior, porque tem cinco notas, enquanto a música dos brancos tem sete. Enquanto os educadores não acreditarem que a cultura africana tem o mesmo status da cultura europeia, não vamos desconstruir isso.
Por falar em educadores, qual sua análise sobre a proposta da ‘escola sem partido’, do governo de Michel Temer?
Não existe isso. Toda escola vai ter sempre um partido, porque até a abstenção é uma forma política. Se existe uma escola sem partido, então ela tem um partido, que é o da abstenção ou o da alienação. A ideia da escola sem partido é o da escola sem opinião de esquerda. Pode até ser verdade que os professores ensinem a doutrina da esquerda, não ensinem a da direita. E nenhum professor vai ensinar as duas doutrinas. Ele vai ensinar aquilo que acredita, porque ele tem um partido. É uma tentativa inócua de se tentar implantar uma escola que só produza conhecimentos objetivos. Todo conhecimento é subjetivo, até o da matemática.
Você tem várias histórias sendo buriladas para livros diferentes. Como consegue administrar as ideias, personagens diferentes?
A partir do Movimento Pendular encontrei uma forma em que eu me sinta mais à vontade de narrar, e que dispensa totalmente a primeira pessoa. Ali o narrador sou eu. A teoria literária vai dizer que é também um outro personagem. Eu aceito, não estou me insurgindo contra. Mas faço questão de mostrar que tento borrar, romper esses limites entre o personagem do autor e do narrador. E não é que eu tenha começado todos esses livros, mas tenho a ideia. Começo estimulado por um problema, um tipo de mitologia, conjunto de mitos ou que um mito específico me propõe. Lendo como leio sempre muita mitologia, se acho que aquilo pode provocar um incômodo, se traz alguma reflexão politicamente muito incorreta do ponto de vista do pensamento dominante, então quero fazer um livro sobre aquilo.
E você leva em média quanto tempo para escrever um livro?
Uns três anos.
“A quantidade de escritores que escreve sobre escritores é absurda. É uma autorreferência que acho nociva para o leitor.”
Você já disse que a literatura é uma possibilidade de viver vidas múltiplas. Há um personagem especial, de seus livros ou de outro autor, que te passou essa sensação?
Acho que todos eles. Li muita coisa boa, ou pelo menos li coisas que sempre aproveitei muito, mesmo dos livros ruins. Penso que se vive outras vidas, outras experiências. Livros que são ambientados nos anos 1920, por exemplo. Eu não vivi aquilo, nasci em 1961. Mas posso viver a experiência, até visualmente. Imaginar essa cidade naquela época. Essa transposição é fundamental na literatura. Isso de certa forma é um protesto contra a literatura contemporânea.
Um protesto?
Acho que todos estão muito preocupados com o presente, preocupados com suas próprias figuras também. A quantidade de escritor que escreve sobre escritores é um negócio absurdo. Então, é uma autorreferência que acho nociva para o leitor. Será que não podemos criar personagens que não são tão colados em nós próprios? Um pintor de paredes, por exemplo. Por que não ir para um personagem que é diferente de você? Você pode ter um narrador que seja você? Pode, claro. Mas por que não ousar?
Falta algum prêmio, dentre os muitos que você já ganhou?
Faltam os que não ganhei (risos). Os prêmios servem mais para promover a literatura brasileira em si. E precisa de uma reflexão do próprio escritor, a gente não pode se eximir. Ele precisa pensar que tem um papel social. Não pode escrever só pensando no próprio umbigo, na arte dele, na loucura dele, na cabeça dele. Tem que saber que escreve para o leitor. E acho salutar que esses prêmios não sejam reincidentes. Fui beneficiado com prêmios quando era um autor mais novo. E é natural que à medida que vou ficando mais velho receba menos prêmios. Existem outras pessoas que precisam também de espaço, outras vozes que merecem ser lidas.
E onde está o reconhecimento?
O reconhecimento de um escritor não é o prêmio que ele ganha. É o público que ele tem. O grande prêmio é você ter leitores, porque você os consquistou. O prêmio em si é o julgamento de duas ou três pessoas. Não estou desmerecendo o prêmio, pelo contrário. Adoro todos os que ganhei, e quero continuar ganhando, não estou sendo hipócrita a esse ponto. Mas a verdade é que não trocaria meus leitores por prêmio. Porque isso é o mais difícil de conquistar: o público que vai te ler, e que garante que você pode continuar fazendo seu trabalho. A situação da crise da literatura brasileira hoje é justamente essa, como reconquistar o leitor.
“Não sou uma pessoa de angústias, moro em frente a um boteco onde tudo se resolve.”
Lê-se muito menos hoje que antigamente?
Sim. Estou relendo um romance agora, de 1931, do Benjamim Costallat, hoje completamente esquecido. A primeira tiragem do livro dele saiu com dez mil exemplares. Tem outro romance com 60 mil livros vendidos. Esse universo nós não temos hoje. Nenhum escritor brasileiro tem. Lia-se muito mais autores brasileiros. Hoje, se um autor tem uma edição inicial de cinco mil livros, está bem no mercado. Porque existe uma expectativa de vender essa quantidade.
A que se deve isso?
No fundo no fundo acho que tem a ver com a educação mesmo. É a falência de uma ideia humanística. Essa história da escola sem partido tem a ver com isso. A escola do conhecimento objetivo. Você não vai criar leitores porque o livro não te dá nenhum conhecimento objetivo. É difícil você querer vender literatura apelando para o conhecimento objetivo. Por exemplo: compre esse livro porque o Alberto Mussa vai te ensinar como era uma cabana dos índios do século XVI. Não é assim que você faz a venda de um livro, porque as pessoas não estão interessadas em saber como era a casa de um índio naquela época.
Do seu ponto de vista como leitor, quando um livro te absorve por completo ?
Para ser completo, precisa ser simples na forma, profundo no conteúdo, tratar dos problemas gerais da condição humana (e não apenas dissecar personagens), e consequentemente ter um alcance universal e atemporal.
Dos clássicos, qual você se arrepende de ainda não ter lido?
Não tenho como saber, não tendo lido. Posso dizer que já me arrependi de ter lido certos clássicos, como o Ulisses do Joyce, uma grande farsa.
De todos os autores que você já leu, qual livro gostaria de ter escrito?
Asfalto Selvagem, do Nelson Rodrigues.
O tempo ou a falta dele é algo que te angustia?
Nenhum dos casos; não sou uma pessoa de angústias, moro em frente a um boteco onde tudo se resolve.