Ronaldo Fraga

Ronaldo Fraga, estilista | por Heloisa Eterna | foto Divulgação

RONALDO FRAGA: ESTILISTA PRATICA O HUMANISMO FALANDO DE CÃES, TRANSSEXUAIS E SABE A HORA DE TIRAR A ROUPA

Ronaldo Fraga, ao lado de estilistas como Miuccia Prada, você foi considerado pelo Design Museum de Londres um dos sete estilistas mais inovadores do mundo. Para continuar correspondendo a reconhecimentos como esse você chega a ter algum tipo de angústia na hora da criação?

Sempre falo da importância da angústia. Acho que a gente não pode acabar com ela. Não raro, quando defino uma linha de pesquisa, um tema para a minha coleção, me pergunto: “Por que fui arrumar isso, por que fui escolher o caminho mais difícil?”. Com a maturidade, a angústia tem um tempo de duração. Então, num processo, ela vai até tantos dias, acabou, vamos trabalhar. A angústia que vivo é muito mais do processo de realizar do que em manter fama, reconhecimento. Nunca me angustiei por isso. Claro que é legal ter o reconhecimento do seu trabalho, ter recebido esse prêmio e outros. Mas nunca trabalhei em função disso. Todo processo criativo nasce de uma angústia. Só que ela é como um leão, que você tem que domar.

Para ser criativo é preciso ter dúvida?

Não tenho dúvida de nada (risos). Acho que o ato de criar é um ato de coragem. Quando digo: “Por que fui arrumar isso?”, não é pela dúvida, mas pela angústia. Em fazer com que a pesquisa, o pensamento analítico e crítico se transforme em algo dimensional. E isso não depende só de você. Essa parte, a do depender, que é complicada.

Você ultrapassou os limites das passarelas, criando figurinos para espetáculos de dança e teatro, ilustrando e escrevendo livro. Acha que o exercício da sua criação é maior em alguma dessas áreas?

Não. Acho que essas áreas são vetores diferentes. A moda é um vetor, o design de interiores é outro vetor, o desenho de cinema, teatro, figurino também é outro vetor. Transitar por esses vetores retroalimenta toda a sua relação com a criação. Me sinto muito à vontade em transitar por todas essas frentes. Isso só alimenta uma coisa com a outra. Pensar a casa, no caso de objetos, como uma roupa do corpo; pensar o figurino como uma história que se conta da mesma forma que na moda; pensar a moda como teatro; a arquitetura também como roupa. Quando a gente rompe esses limites, todos nós ganhamos. Quem cria e quem consome.

Seus desfiles na SPFW são sempre aguardados com expectativa por conta da ousadia que você leva. Você já incentivou a adoção de cães, colocando uma cadela vira-lata na passarela com um cartaz no qual se lia: “Animal não é grife. Adote, não compre”. Noutra ocasião, levou transsexuais. Você está sendo politicamente correto ou fugindo à regra?

Eu não tenho nada de correto. E quando falam assim: “Ah, você é um intelectual que usa a moda como política”. Gente, não é nada disso. Procuro ser um homem do meu tempo. Com todas as idiossincrasias, todas as angústias, com todas as pernas tortas, ? Aquilo que me emociona, que me indigna já é muito importante para eu trazer para o meu trabalho. Porque o meu trabalho é minha escrita com o meu tempo. O ato da escolha da roupa por si só já é um ato político. Quando você escolhe uma roupa para estar numa situação, você está fazendo política. Uma das faces fortes da moda é a moda como manifesto político, sim. Só que a gente tem utilizado cada vez menos. Isso não é só no Brasil. No tempo que a gente vive, com a coisa de ‘ser’ para o consumo, ‘ter’ que ser transformado em dinheiro, ‘ter’ que não sei o quê lá… Os criadores estão abrindo mão da moda como manifesto político. Mas eu não abro porque acho que é aí que ela pode ser, no mínimo, transformadora.

Com tantas questões conflitantes que estamos vivendo no mundo, qual dessas áreas pelas quais você transita usaria para falar disso de uma forma mais imediata?

Tem profissionais que têm áreas de manobra maior ou menor que outros. Eu procuro ocupar e expandir os meus espaços de manobra. Quando falo do compromisso civil que procuro ter, que é criar pontes entre o Brasil feito à mão, o Brasil artesanal; que é me envolver em projetos que gerem emprego e renda mas com apropriação cultural; que é trazer para o meu trabalho, que tem uma mídia espontânea maior do que um dia pude esperar, coisas que são espinhentas ao nosso tempo… Acho que é minha forma de falar de política, de protestar, de buscar uma transformação pessoal mas também do olhar do outro.

“O Brasil está no ranking dos países que mais cometem violência contra travestis e homossexuais. Isso também é medieval.”

Sua moda traz um conceito mais humanista. Você coloca uma lente de aumento para compreender o mundo ao seu redor. Nesse contexto, muitas vezes ela falou de intolerância. Onde o brasileiro é mais intolerante?

Essa intolerância é um sintoma do tempo em que vivemos. Em qualquer lugar do mundo. Hoje vivemos questões de intolerância que já deveriam ter sido resolvidas. Por exemplo, quando você vê intolerância com opção sexual e religiosa. Vivemos um momento que é quase medieval. Quando você lê uma notícia de perseguição das milícias, nas favelas do Rio, contra pessoas de religiões das matrizes africanas. Isso é lá dos anos 50. Não é possível que a gente esteja vivendo isso ainda. O Brasil está no ranking dos países que mais cometem violência contra travestis e homossexuais. Isso também é medieval. E hoje, quando pensávamos que não tínhamos intolerância às diferenças políticas… Temos. Não temos intolerância em relação à questão racial… Temos. Então, essa lente de aumento que a gente viu sendo colocada no mundo, obviamente aqui no Brasil a gente está vendo reflexo dela.

Você disse uma vez que se tem uma coisa boa desse tempo que estamos vivendo é que o mundo acabou. O que isso quer dizer exatamente?

As fórmulas ruíram. Hoje não tem o certo e o errado. Não tem uma fórmula absoluta para
o mundo, que é absolutamente diverso. Falar assim: “Ah, o caminho da moda de varejo é esse. O processo criativo na moda é esse…” Não existe isso mais, ?  É sinal de um mundo em construção. Isso se aplica a tudo. Quando falo da moda, não falo só da moda. Porque, o que é a moda se não esse eficiente documento do tempo, um reflexo preciso do tempo que em vivemos?

Acredita que o fato de ter ficado órfão de mãe aos 7 anos de idade e de pai aos 11 te impulsionou a ser um self-made man?

Acho que tudo, ? A gente é um mosaico, não tem um ponto, um buraco que foi responsável por tudo. Tem uma série de buracos. Acho que isso foi. Mas também um Brasil onde vivi minha infância e adolescência, em que o rombo social era menor. As crianças brincavam na rua, o filho da empregada com o filho do médico. O Brasil era mais próximo do Brasil nesse sentido. Me influenciou bastante a escola pública de qualidade. São coisas que eu morro de saudade e me fazem ter inveja de países que ainda possuem isso. Então, soma-se tudo isso num balde. E, claro, a questão familiar. Éramos cinco irmãos sem pai nem mãe em casa, onde nunca tive ninguém que olhasse meu boletim, minhas notas.

” Entendi que minha arma de Jorge era a minha própria cultura.”

Ter estudado com tantos jovens alunos vindos de famílias abastadas na Saint Martins de Londres (escola de moda e design por onde também passaram John Galliano, Stella McCartney e Alexander McQueen) te inibia de alguma forma ou era algo que te desafiava a ser mais criativo?

De certa forma, sim. Mas não era a questão do abastado. No meu caso, era a de alguém que vinha de um país do qual a única referência que eles tinham, naquela época, era a mulata e o futebol. Eles achavam surreal que tivesse no Brasil um estilista, uma indústria de moda ou uma indústria têxtil. Entendi que minha arma de Jorge, naquele lugar, era a minha própria cultura. Aliás, acho que a moeda de troca no mundo é a cultura que cada um carrega no seu DNA, na pele, no seu jeito de falar, pensar e fazer as coisas. Meu desafio foi nessa direção.

Vivemos hoje no Brasil uma série de conflitos políticos permeados com problemas sociais sérios. E o mundo também parece de cabeça para baixo. Você tem dois filhos… Refletindo um pouco sobre isso, qual o seu medo?

Procuro ser generoso e corajoso com o meu tempo. Daí que vem meu lema: “Otimista só de raiva”. Não tenho medo de nada, acho que tudo vai passar. Óbvio que quando vejo essa intolerância, esse país dividido politicamente, acho tenebroso. Aí, tenho medo, por exemplo, do que está por vir no Brasil nas eleições de 2018. As figuras que vamos ter como opção, em que regime que vamos entrar. Esse crescimento do envolvimento, que sempre tivemos, da religião com a política, mas que agora tem uma coisa das pentecostais, me amedronta. De qualquer forma, a história está nos ensinando que tudo passa. Tudo vem e vai. E o que ensino para os meus filhos é isso: que o tempo deles quem fará são eles mesmos. Em relação a eles, tenho também medo da passividade. Tem uma geração que está muito passiva. Que briga, reclama, mas não faz porra nenhuma. Para mim, a política tem que ser na prática. Por exemplo, ceder dois dias do seu trabalho para uma comunidade. É isso que me interessa.

Além do seu bigode a la Salvador Dalí, o que você diria que é mais surreal no Brasil?

O que ainda me choca é o rombo social. É você ter no mesmo país a África e a Alemanha. Ter capitais como Curitiba e ao mesmo tempo ter uma São Luís do Maranhão. Ter um estado como Alagoas, onde tem um dos piores índices de desenvolvimento humano. Isso é surreal, é difícil de entender.

O que te faz chorar?

Sou um homem de riso frouxo, mas também de choro fácil. Isso tem muito da cultura brasileira, onde comédia e tragédia residem no mesmo lugar. A última vez que chorei, recentemente, foi quando li matéria no jornal sobre uma instalação que era a casa de um morador de rua, que ficava embaixo de um viaduto em São Paulo. No dia seguinte, a prefeitura foi lá e derrubou a casa do cara, que era toda arrumadinha. Derrubou para mandar ele para o quinto dos infernos, tirar ele dali, nesse processo de assepsia que estão passando as grandes cidades. Essas notícias do mundo cão me fazem chorar.

Qual é o melhor momento para ficar sem roupa?

Por acaso meu vetor é a moda, mas poderia ser qualquer outro. Mais do que o ofício, a importância está em como você pensa esse ofício. Na maioria das vezes a importância que a roupa tem é invisível e intangível. Então, o melhor momento para estar sem roupa é aquele que peça que você deixe tudo para trás, que abra mão de tudo, que você se desnude. Acho que o tempo inteiro o tempo está pedindo isso.

 

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