Karim Aïnouz

Karim Aïnouz, cineasta | por Heloisa Eterna | fotos Rafael Aguiar | Dezembro 2017

KARIM AÏNOUZ: A NECESSIDADE EM FAZER FILMES SOBRE PESSOAS À MARGEM DO PODER

Seu pai fugiu de uma guerra na Argélia, você nasceu em Fortaleza e escolheu viver na Alemanha. Ser estrangeiro já te remeteu a algum sentimento pelos quais passam os milhares de imigrantes que hoje buscam asilo na Europa? Um sentimento de ser sempre estrangeiro?

Sou filho de um casamento binacional, mãe brasileira e pai argelino. Desde pequeno sentia que não pertencia a um lugar só. Saí para morar fora do Brasil pela primeira vez aos 18 anos, voltei várias vezes mas por períodos curtos. Então, o morar fora virou casa. Gosto de ser imigrante. Mas venho de um lugar de privilégio. Não tive que ser, eu escolhi ser imigrante. A sensação de não estar enraizado é muito libertadora. É uma coisa que celebro.

Por que Berlim? 

Primeiro fui para a França, meu pai vive lá. Depois morei muitos anos em Nova York, por diferentes razões. Fui em 1988 para estudar, mas nem ia fazer cinema. Comecei lá. Em 1994 não tinha para onde voltar, com o fim da Embrafilme, o governo Collor acabou com tudo. Não foi uma decisão morar fora a vida inteira, mas fui gostando. Voltei a morar no Brasil em 2002, quando fiz meu primeiro longa (“Madame Satã”, Prêmio de Melhor Direção no Festival de Biarritz). Ganhei uma bolsa de residência artística na Alemanha. Alguma coisa em Berlim me encantou. Nunca consegui decifrar. É muito diferente de tudo que já vi. A cultura da Europa do norte. Lá é frio, é escuro. Tudo isso eu gosto, me interessa. É muito diferente do que eu sou e vivi. Berlim é uma cidade fênix, que se reinventa o tempo inteiro. Passou por várias guerras e está aí de pé.

Além de tratar da questão calamitosa dos imigrantes na Europa, o seu documentário “Aeroporto Central” mostra um pouco esse lado mais escuro, mais invernal e de renascimento de Berlim… ** “Aeroporto Central” foi rodado dentro do Tempelhof, uma construção emblemática do regime nazista na Alemanha, desativado para voos há dez anos.

É muito sobre isso também. Esse lugar era um aeroporto militar, que virou um lugar central na Segunda Guerra e em seguida um aeroporto comercial. Hoje em dia, abriga (cerca de três mil) pessoas que fogem da guerra no Oriente Médio.

“O cinema é muito forte, tem uma coisa de fazer justiça. De tornar visível o que talvez é invisível.”

De alguma forma o sentimento de pertencimento a um lugar permeia os seus filmes?

Não de maneira calculada. Fazer cinema dá trabalho pra burro. Não dá para você fazer um negócio que ache que não vale a pena. Você fica morando com aquilo anos. Tem que ser um negócio que te tire da cama de manhã e te catapulte para o mundo. Fazer cinema é jogar luz em algum lugar. Você joga luz na tela, entende?  Você dá luz às coisas. O cinema captura a luz. Os filmes sempre começam através dos personagens, de questões, os personagens encaram essas questões. O “Madame Satã” vem num momento da retomada do cinema brasileiro. Me lembro que era tudo sobre homem branco. Era “Chatô”, “Mauá”, “Xangô”, uns negócios assim. E eu falava: “Gente, e aí? Cadê o Brasil? Não aí não? Por que que não aí?”. Ele veio dessa necessidade de ocupação.

Como nascem as histórias de seus filmes?

Quando comecei a fazer “O Céu de Suely” (2006) era uma época do cinema brasileiro que, com algumas exceções, você tinha a Anna Muylaerte, a Tata Amaral, mais duas ou três, pouquíssimas diretoras. E quase nenhum filme com protagonistas femininas. Para mim, os projetos e as histórias vêm com a necessidade de se falar de pessoas que estão à margem não no sentido demográfico, mas que estão à margem do poder. O cinema é muito forte, tem uma coisa de fazer justiça, sabe? De tornar visível o que talvez é invisível. Acho que eles (os meus filmes) têm todos uma questão de indignação com o estado de coisas que estão acontecendo naquele momento. São filmes sobre um contexto específico. Nunca fiz um filme que é genérico. São sempre encravados num lugar, num determinado momento histórico.

“Era muito importante a gente fazer retratos justos e amorosos sobre homens árabes.”

Por que nenhum personagem feminino chamou sua atenção? O que determinou a escolha dos dois homens (um sírio e outro iraquiano) como protagonistas de “Aeroporto Central”? 

Tínhamos alguns personagens femininos. Mas, culturalmente, era muito complicado ter uma mulher na frente da câmera de um fotógrafo e diretor homens. Eram mulheres casadas, os maridos e às vezes os filhos não deixavam que fossem filmadas. Durante um ano filmando, entendemos essa impossibilidade. Ao mesmo tempo, intuitivamente fiz uma escolha. Achava que era muito importante a gente fazer retratos justos e amorosos sobre homens árabes.

Atores_Tempelhof

Ibrahim e Qutaiba, personagens de “Aeroporto Central”| foto Divulgação

Como assim?

O homem árabe virou o demônio para a sociedade ocidental nos últimos 20 anos. Tudo bem, teve o 11 de setembro, mas é uma minoria. Me desculpe, mas não dá mais. Fui ficando com raiva daquilo. Vi um garoto de 18 anos, o Ibrahim, fugindo para continuar vivo. E tinha o personagem do médico, um cara de 35 anos, que era absolutamente necessário falar dele. Um cara incrível que salvou milhões de vida, que é o iraquiano Qutaiba. Entendi que eles deveriam ser os protagonistas porque falavam de dilemas geracionais distintos. Atualmente,  o Ibrahim trabalha num cinema de Berlim, mas quer fazer filmes. Começou vendendo ingresso e hoje é gerente. Está namorando uma brasileira e tem uma vida inteira pela frente. O outro, claro, também tem uma vida inteira pela frente mas com 20 anos a menos. Quais os dilemas que esses dois homens têm ao chegar num lugar novo?

“Essa é a configuração do mundo neoliberal, de segregação, de pouca horizontalidade.”

(Sobre imigrantes serem abrigados num hangar de um aeroporto no meio da cidade)

Os moradores de Berlim transformaram as pistas áridas do aeroporto desativado em área de lazer. Como eles reagem a essa situação, sabendo que lá dentro estão centenas de imigrantes?

Para os berlinenses é muito confuso, porque existem outros abrigos em bairros periféricos. Acho maravilhoso porque é no meio da cidade. Eles vão ter que lidar com aquilo. Você cria uma possiblidade de interação muito maior. O bairro próximo ao aeroporto, Neukölln, onde moro, está transformado, e de uma maneira muito positiva. Tem uma mistura maior de gente de outros lugares do mundo, os restaurantes ficaram melhores, a comida mais gostosa, mais variada. O Tempelhof tem pessoas entre a vida e a morte, e pessoas que estão entre a vida e o prazer, que são aquelas que ocupam as pistas com seus skates, bicicletas. Era importante jogar luz nesse contraste, porque o centro faz de conta que não existe periferia.

Fora o aspecto inusitado de um aeroporto desativado servir de alojamento para refugiados, o que mais te intrigou ao filmar lá?

Geralmente, nos países de história colonial, os imigrantes moram na periferia. Na Alemanha também. Mas viver naquele aeroporto… Se aquelas pessoas pudessem ter escolhido não ficar ali, eles teriam escolhido. É desumano morar num hangar, mas é no meio da cidade. O que me fascinou é que a fricção entre periferia e centro está naquele aeroporto. O centro usando as áreas de lazer que são as pistas. Isso é muito contemporâneo. Essa é a configuração do mundo neoliberal, de segregação, de pouca horizontalidade.

“A gente vive uma crise de solidariedade no mundo.”

Entre os países europeus, a Alemanha foi o mais solidário com o drama dos imigrantes, o que trouxe também críticas à chanceler Angela Merkel. As outras nações não deveriam ter um olhar mais humanitário?

Tem um monte de gente que morre atravessando o Mediterrâneo. Você acha que tem gente que sai de casa para atravessar o oceano porque quer, perigando perder a vida porque quer roubar o emprego do outro? Isso é uma loucura, um delírio. A gente vive uma crise de solidariedade no mundo, especificamente nos países ricos, estamos falando do hemisfério Norte e Estados Unidos no mundo ocidental. Houve um gesto de nobreza da Angela Merkel. Na França, as pessoas são tratadas de uma maneira bárbara. Mas com o estrago que a Alemanha fez no mundo com a Segunda Guerra, acho que é o mínimo de justiça que podiam fazer. A Alemanha tem obrigação histórica de ser solidária. Foi muito bonito da parte da Merkel. Mas toda pauta de oposição a ela é por conta do que ela fez. É uma aberração. Ela fez algo que era necessário.

Karin Aïnouz, cineasta

Como você vê essa guinada à direita no mundo?

É um momento muito delicado. Acho que a gente tem que estar muito atento. Insisti em fazer esse filme porque acho que tem que se criar empatia com o outro, se não a gente tá perdido.

Você fez um discurso duro contra o presidente eleito Jair Bolsonaro, durante o lançamento de “Aeroporto Central”, no Festival do Rio. O que te motivou?

A gente tem um lugar de fala superprivilegiado, um lugar de fala pública. Não dá para não ocupar. E num momento de guerra, de crise e de desunião como o que a gente está vivendo nesse país, não tem como subir num palco e não fazer um apelo para que a gente fique numa situação melhor. Antes dos meus filmes normalmente nunca falo nada. Mas face ao que estamos vivendo, tem que falar. Porque senão a gente é conivente com o que está acontecendo. E estamos vivendo um momento delicadíssimo, de retrocesso, de intolerância, que é muito perigoso. Aquilo foi um texto que escrevi quando acordei, na manhã do dia seguinte ao resultado da eleição. Pensei: “Não é possível que isso tenha acontecido. Uma tragédia tão grande”. E o texto começa com uma frase do maldito Trump, que disse que o Brasil ia cometer suicídio mas que isso era um problema do Brasil. Ele é um idiota, mas achei maravilhosa essa frase. Quis começar com isso, mas não citei o Trump porque não ia ficar empoderado esse filho da puta. Mas é dele a frase.

Consegue ser otimista?

Ser otimista é um pouco demais, porque o negócio tá duro, não tá brincadeira não. Às vezes acho que fiquei doido. Será que eu tô doido, não tô entendendo o que está acontecendo? É quase engraçado porque é tão trágico. Mas não sei… Pode ser que tudo aconteça. A gente já fez tanto estrago no planeta, que pode ser que a gente faça um grande agora que não tenha volta. Mas prefiro pensar positivamente. Pensar que na eleição que teve no Brasil o número de pessoas que não votaram e as que votaram contra o resultado foram bem maiores. E saber que a gente tem um trabalho gigante pela frente, que é conquistar o coração e a mente desses 52 milhões que votaram a favor de Bolsonaro. Tem uma tarefa a ser feita, que é muito importante. Então, é duro. Acordar de manhã não é brincadeira. Também nunca foi tão diferente, houve hiatos onde não tivemos que lutar. Mas a gente sempre teve que lutar. A gente chegou num nível de absurdo tão grande, que vai ter que ter uma reviravolta tão grande quanto. E isso é muito animador.

O que te dá esperança?

Tem uma juventude incrível, que foi formada durante os últimos 15 anos, que é absolutamente empoderada. É nela que eu tenho uma puta confiança, uma puta esperança de que as coisas vão mudar.

 

❤️aCriatura agradece à produtora Mar Filmes | Diane Maia

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