Thiago Soares

Thiago Soares, bailarino | Maio 2017

THIAGO SOARES: UM BAILARINO COM NARIZ DE BATATA QUE INCORPOROU TODOS OS PRÍNCIPES

por Heloisa Eterna |foto Daryan Dornelles

Thiago Soares, sua história vai virar filme (direção de Marcos Schechtman) …

Nunca imaginei ter um filme sobre mim. Tem sido um processo quase terapêutico, de destrinchar coisas do meu passado, de olhar de volta para minha infância, o começo da minha vida. Coisas que me emocionam. Me deparei com situações que mexeram comigo. Descobri que fui amado por alguém de maneira incondicional. Aquela pessoa era “a pessoa”. Tem uma lado melancólico, porque é alguém que já não está mais aqui.

Quem era essa pessoa?

Foi a mais fundamental na minha carreira, que deu a chave para me tornar um bailarino profissional. Você vai ter que ver o filme (risos).

O que é preciso para manter-se no posto de Primeiro Bailarino do Royal Ballet de Londres?

Disciplina e motivação. Hoje em dia existem técnicas teatrais, de dança para te dar motivação. Mas sempre usei tudo como veículo de motivação. A raiva, o estresse, o amor. Você tem que tentar pegar esses veículos e colocar na sua arte.

Você já representou vários papéis de príncipe, como Siegfried (Lago dos Cisnes), Florimund (Bela Adormecida) e Príncipe (Quebra Nozes). Algum deles ou outro papel teve grau de dificuldade maior fisicamente?

Cada um tem a sua demanda. Estou dançando o Príncipe Rudolf, do balé “Mayerling”, que é baseado numa história verídica, uma figura atormentada da família real austríaca, que acabou se matando. É um teatral papel incrível. E que exige muito fisicamente. Tenho que viver as duas vidas intensamente: a do atleta, que é a do bailarino que tem que treinar e repetir muitas vezes, e a do ator, porque tenho que fazer o laboratório artístico para viver o personagem. É um desafio duplo, né?.

 “O tempo todo tenho dores. Acho que na dança você tem que abraçar as dores.”

Mesmo depois de tanto tempo ainda dá frio na barriga quando se apresenta como artista convidado em outras companhias, como Scala de Milão?

Total. Quanto mais os anos passam, as responsabilidades aumentam também. E as pessoas ficam com a memória do que um dia você fez antes. Então, quando você volta a fazer elas ficam com a imagem daquilo. Fico nervoso, mas num nível controlado, bom. O que faço é um trabalho que me define muito. Na minha vida tudo veio, foi e vai. Mas a dança é meu melhor amigo, minha parceira, meu todo dia, meu ganha-pão, meu trabalho onde me entristeço e me alegro. A dança sempre esteve ali, em todos os momentos. Acho que tenho essa parceria com a dança que vai além da dança. É uma coisa de vida. Por isso ainda fico nervoso.

Você se exercita seis horas diariamente nas aulas de balé e nos ensaios. Com toda essa carga física, qual a parte de seu corpo que mais sofre quando está no palco?

Tudo. Tenho muitas dores. O tempo todo tenho dores. Acho que na dança você tem que abraçar as dores. Porque a nossa realidade é ter sempre alguma coisa doendo. Se não está, é porque não está vivo. Tenho dores nos pés, principalmente.

Ainda tem muito medo de se machucar?

É uma realidade. É uma profissão perigosa. Tem um fantasma que está aí, e ele transita um pouco pela minha cabeça. Mas  sempre vivi no perigo. Venho de dificuldades, nunca tive muita segurança. Quando esses fantasmas aparecem, sempre lembro do meu passado, dessa falta de segurança, e que eu encontrei essa segurança dançando. Então, tento usar a dança como um veículo de conforto, não de medo. Ali eu posso me soltar, me entregar. É o que me define, então não posso ter medo disso. A dança foi o que me acolheu.

A reação da platéia pode te desconcentrar? Aplausos fora de hora ou alguém tossindo, que é o que acontece muitas vezes…

Não penso na platéia. Acho que essas inquietações da platéia são de livre desejo e direito dela. Não me lembro de ter me incomodado com a platéia. A não ser uma vez, quando dancei em praça pública, em Carajás, num projeto da Vale. Os índios começaram a interagir com o espetáculo. Foi diferente, engraçado até. Achei que um índio poderia subir no palco e começar a dançar também (risos).

“Não achei que operando o nariz ía fazer mais papéis. […] Fiz todos os príncipes com meu nariz de batata.”

Um tempo atrás sugeriram que você afinasse o nariz…

Não achei que operando o nariz ía fazer mais papéis. Até cheguei a cogitar, porque a pessoa que sugeriu era de muita confiança, mas acabei decidindo que não. Pensava: “Cara, se meu nariz vai ser um problema para fazer um príncipe, então não farei”. E acabou sendo contraditório, porque fiz todos os príncipes com meu nariz de batata. Acho que retrata uma época em que as pessoas tinham que operar porque a sociedade, aquela nata mais aristocrática que abrange o público de balé e ópera, não aceitava. Mudou muito. Hoje tem bailarinos e sopranos negros fazendo papéis principais, chineses. Isso não é mais barreira para a gente.

Alguns dizem que enquanto Baryshnikov conquistou o coração dos críticos, Nureyev conquistou multidões. Mas quem foi chamado de “Deus da dança” foi Nijinsky. Quando você dança, hipoteticamente, qual deles gostaria de incorporar?

Esses são deuses da dança. Eu sou Thiago (risos). Sempre fui um grande fã do Baryshnikov. Ele fez uma carreira dinâmica e inteligente. Mas óbvio, sei que o Nureyev tinha essa coisa mais animal, mais mística. Embora de maneira alguma esteja me comparando ao Nureyev, minha trajetória passa por esse caminho meio místico. Pô, como esse cara saiu do hip-hop para os palcos do Scala de Milão, da Opera House de Londres, da Opera de Roma. Essa coisa física, latino-americana nossa, carnal, acho que isso tudo veio muito em mim. E transita um pouco por esse vocabulário do Nureyev.

Você nasceu em Nova Iguaçu e cresceu em Vila Isabel, município e subúrbio do Rio de janeiro. Quando é que se sente mais estrangeiro morando numa cidade cosmopolita como Londres?

Sou um artista que sempre tenta voltar para as suas raízes para ter forças para continuar. Ao mesmo tempo minha casa é aqui, muita coisa na minha vida aconteceu na Inglaterra. Meu coração é dividido. Mas não me sinto incomodado. Me sinto um artista latino-americano. O Brasil está muito evidente em mim, na minha arte, na minha dança. Então não fico pensando nisso. Acho que passaporte para mim não é um problema.

Já pensou o que vai fazer quando parar? Você está com 36 anos e dança há uns vinte… 

Sou muito consciente sobre idade, projetos que posso fazer. Mas isso ainda não está batendo à minha porta. Sinto que estou no auge, vivendo tudo ao mesmo tempo, espetáculos, viagens… Estou muito feliz, curtindo isso. Tenho um plano na minha cabeça, mas isso depende também das circunstâncias da vida, ? Porque às vezes acho que a gente decide muito e não decide nada. Quero dançar ainda alguns uns bons anos, trabalhar em obras novas e eventualmente fazer uma transição. Obviamente sou uma pessoa da ópera, do teatro, não vou poder nunca fugir disso, meu organismo não vai deixar.

Você é feliz?

Não todas as horas. Mas dou minhas risadas. Quando posso, tiro minhas ondas (risos).

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