Alexandra Lucas Coelho

Alexandra Lucas Coelho, escritora | por Heloisa Eterna | foto Isabela Kassow | Março 2017

ALEXANDRA LUCAS COELHO: UMA ESCRITORA COM DISPONIBILIDADE PARA O MÁGICO

Alexandra Lucas Coelho, além de ter sido premiada por algumas reportagens que escreveu como jornalista, você recebeu logo de cara, com o primeiro romance “E a noite roda”, um dos mais importantes prêmios de literatura do seu país, Portugal. Qual a vantagem de ganhar um prêmio?

Um prêmio é sempre resultado de várias circunstâncias, e transporta consigo sempre uma injustiça. Qualquer prêmio irá excluir escritores ótimos, que mereciam ganhá-lo. Não há dúvida sobre isso. Mas os prêmios têm, sim, essa vantagem de poder ajudar o autor a continuar a escrever. Ganhar foi atordoante e avassalador. Não acho que é um grande livro, acho simplesmente que tinha que fazer. Era um ponto de transição. É assumidamente autobiográfico, tem a ver com a minha experiência como correspondente em Jerusalém, cobrindo o conflito Israel-Palestina durante vários anos. O romance é resultado da minha relação com aquele território. Pude tratar do tema com uma liberdade que o jornalismo não permite, porque tem regras, há códigos — que respeito e reconheço.

“Deus-dará”, terceiro e mais novo romance, com quase seiscentas páginas, foi gerado em boa parte na sua permanência, por mais de três anos, no Rio de Janeiro. Você disse que teria sido impossível continuar nos quadros do jornal Público e ao mesmo tempo se dedicar ao livro. Acha que conseguiu ao se mudar para o Rio?

Percebi rapidamente que era impossível continuar a morar no Rio e a escrever o livro. Porque o Rio me convocava o tempo todo para viver a cidade. Não dá para mergulhar dentro de nós. Mas, numa caminhada pela Lagoa Rodrigo de Freitas, pensei: “Quero fazer um tributo a esta cidade em que estou morando”. O título veio naquele momento. Que era a sensação que eu tinha: de uma cidade ao Deus-dará, do abandono a que as pessoas são jogadas nela e ao mesmo tempo uma cidade a mercê da natureza. A história se passa com sete personagens em sete dias ao longo de três anos— 2012, 2013 e 2014. Retrata, do meu ponto de vista, a gênesis — minha experiência, que não é a de um carioca — e o apocalipse.

O apocalipse é uma alusão ao momento crucial do país com o impeachment de uma presidente. Mas você regrediu no tempo até a colonização do Brasil pelos portugueses…

Portugal foi o maior escravagista do Atlântico, da história. Não só iniciou o tráfico de africanos, como foi responsável sozinho por 47% dele, enquanto Inglaterra, França, Holanda e Espanha, juntos, foram responsáveis por 53%. Portugal tirou 5,8 milhões de pessoas da África, com a maior parte delas fez a colonização do Brasil. Em Portugal, as pessoas não têm uma grande noção sobre isto.

“Uma das coisas mais estranhas no Brasil são os quartos de empregadas domésticas.”

Quais são os rastros dessa história na vida atual do brasileiro? 

O Brasil é independente há muitos anos, mas isso não elimina o fato de que Portugal tenha estado aqui durante 322 anos, isso não é pouco tempo, e que estruturas de sociedade de Portugal ainda estejam aqui. Um português que vive no Rio de Janeiro, que está aberto a tudo isso, vê que não é passado. As heranças da sociedade escravocrata estão na lógica da sociedade brasileira, em seu alicerce até hoje. Na hierarquização, no racismo que existe.

Portugal poderia se redimir de alguma maneira?

O que eu gostaria é que Portugal fizesse um tributo aos africanos que escravizou e aos indígenas, pelo menos um milhão, que foram mortos. Eles não são lembrados em Lisboa, que foi capital do império, nem em tributos físicos como os que lembram as viagens marítimas dos séculos XV  e XVI. Essas viagens foram maravilhosas e esses navegadores foram homens ousados? Foram. Milhões de pessoas foram exterminadas? Foram. Gostaria que isto estivesse no discurso dos governantes e nos currículos escolares, que houvesse um memorial que lembrasse que isto aconteceu. Temos que saber que tudo teve um preço, e que esta herança está viva.

Essa herança é visível na forma como as pessoas se relacionam com os menos abastados, na manutenção das diferenças de status?

Sim. Uma das coisas mais estranhas no Brasil são os quartos de empregadas domésticas, e mais estranho ainda o fato de continuarem a serem construídos nos novos apartamentos.

Desbravar os mares era uma coisa do macho, a mulher não teve esse protagonismo…

Ao contrário de outros colonizadores europeus, Portugal não trouxe mulheres para a colonização do Brasil, ela foi feita sobretudo por homens. A mestiçagem vem do estupro feito pelo português que chega, cruza com a negra ou a índia de uma forma mais ou menos violenta, porque pode até não ser o estupro da forma clássica e violenta, mas é o exercício do poder sobre o outro. Isso está no DNA dos brasileiros. E de algum modo, na violência contra as mulheres no Brasil. A imagem da mulher, a forma como é encaixada em modelos… De alguma forma ela tem que ser gostosa, herdeira da mulata. Mas ao mesmo tempo é penalizada como responsável pelo seu próprio estupro. E o machismo, tão presente, tem a ver com a cidade colonial, com a chegada do branco que sujeita os outros à sua necessidade física de povoador, de dominador. As índias e as negras passaram por todos esses propósitos.

“Já estive em muito lugares fanáticos e nunca me converti, nunca tive nenhuma iluminação.”

Você é otimista com relação ao futuro do Brasil?

Tenho uma admiração e um espanto constante pela soberania única dos brasileiros, mas, para não generalizar muito, porque há muitos “brasis”, vamos falar só do Rio de Janeiro. Depois de um ano horrível que foi 2016, com tudo que aconteceu, funcionários a receber salários a conta-gotas, do estado estar falido e toda a violência que a cidade sofre, como é possível que os cariocas ainda mantêm essa energia? Essa alegria de quem conhece bem o fundo do poço, de quem não tem ilusões? As pessoas conseguem ser feliz numa esquina, com um violão e um chinelo de dedos e o mundo caindo à volta. Há um deus interior, e o carioca se lança em todos os deuses possíveis e imagináveis. Não há ateu nesta cidade, todo mundo é devoto de uma entidade da umbanda, é espírita ou acende a vela para o santinho. Mas, na verdade, o santo forte do carioca é ele mesmo.

E você? Tem alguma crença? É agnóstica?

Não sou religiosa. Nem sei bem como me descrever. Cheguei no Rio e vi que todas as pessoas acreditavam em alguma coisa, outras em várias (risos). Mas a cidade me deixou desperta para a dimensão do mágico, que eu menosprezava ou não estava aberta a isso. Já vivi em cidades como Jerusalém, uma das mais fanáticas do mundo, já estive em muito lugares fanáticos e nunca me converti, nunca tive nenhuma iluminação. Mas tive essa disponibilidade para o mágico. Na Bahia, fui ao Candomblé, fui ver um pai de santo, fiz guias. A forma como aqui as pessoas vivem os seus vários deuses me interessa.

Portugal, assim como outros países europeus, sofreu uma crise econômica violenta que veio na esteira de uma crise global a partir de 2008. Portugal vai bem?

Uma coisa que posso dizer, e que fico muito contente, é que Portugal é um dos poucos países que têm no momento um governo de esquerda.

Com todos os problemas que o mundo passa hoje, com destaque para a crise dos refugiados, consegue ser otimista?

Parece um momento particularmente negro. Mas quero acreditar que são movimentos cíclicos. Acho que cada um pode encontrar recursos diferentes para ter forças. Ao mesmo tempo, assim como a violência está por toda parte, está presente em todos os lados, há inúmeros motivos de inspiração também. Há inúmeras pessoas que me inspiram todos os dias, heróis cotidianos. Gente que me dá força pela capacidade que têm de não ficar cínica. Só o não ficar cínico, de ser capaz de amar, de amar em dádivas, dar aos outros… Tudo isso é motivo de inspiração constante. Todos os dias temos hipóteses de não ficar cínicos… porque o cinismo é uma desistência. É simplesmente uma facilidade, uma forma de dizer: “Não vale a pena lutar, então entrego-me já”. Não digo que não haja motivos para isso. Há muitos.

É preciso ter jogo de cintura… 

O Brasil conhece muito bem esse jogo de cintura que é preciso ter. Mas é preciso ter jogo de cintura quando as coisas estão ruim, não quando estão bem, não é?

 

 

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